Atingir o compromisso global de encerrar a pandemia de aids até 2030 passa pelo combate às desigualdades e estigmas que acompanham essa emergência de saúde pública desde o seu surgimento, há 41 anos, destaca o relatório Desigualdades Perigosas, divulgado pelo Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) para marcar o Dia Mundial de Luta Contra a Aids.
O documento indica como as desigualdades e as normas nocivas de gênero estão atrasando o fim da pandemia de AIDS.
“O mundo não será capaz de acabar com a Aids enquanto continuar reforçando o patriarcado”, diz Winnie Byanyima, diretora executiva do Unaids.
A dirigente propõe uma abordagem sobre a interseção de desigualdades que as mulheres enfrentam. “Em regiões com alta incidência de HIV, as mulheres submetidas à violência por parte de seu parceiro enfrentam uma chance 50% maior de ser infectadas pelo HIV”, ilustra Winnie.
Ela enumera que em 33 países, de 2015 a 2021, apenas 41% das mulheres casadas, com idades entre 15 e 24 anos, podiam tomar suas próprias decisões sobre saúde sexual, e afirma que o combate à doença passa pelo desenvolvimento social.
“A única forma eficaz de acabar com a Aids, alcançar as metas de desenvolvimento sustentável e garantir saúde, direitos e prosperidade compartilhada passa por uma abordagem feminista. Organizações e movimentos de direitos das mulheres já estão na linha de frente fazendo esse trabalho corajoso. As lideranças precisam apoiá-las e aprender com elas”, completa.
Exercício do poder
O relatório ressalta que um fator determinante desta situação é o exercício do poder, ao demonstrar, por exemplo, que meninas que permanecem na escola até a conclusão do ensino médio têm reduzida em até 50% sua vulnerabilidade à infecção pelo HIV.
Quando isso é reforçado com iniciativas de apoio ao empoderamento, os riscos de meninas se infectarem com o HIV diminuem ainda mais, destaca o documento. “As lideranças precisam garantir que todas as meninas estejam na escola, sejam protegidas da violência, que muitas vezes é normalizada na sociedade, inclusive por meio da permissão de casamentos de menores de idade, e tenham caminhos econômicos que garantam a elas um futuro promissor”.
Desigualdades e racismo estrutural
No Brasil, as desigualdades impactam a resposta ao HIV de diferentes formas. Dados do Boletim Epidemiológico HIV/AIDS de 2021 trazem luz sobre o impacto do racismo estrutural e das desigualdades, ao indicar uma tendência pela qual as pessoas negras são particularmente afetadas pela pandemia de HIV.
Quando considerados os casos notificados de Aids entre 2010 e 2020, foi observada uma queda de 9,8% na proporção de casos entre pessoas brancas.
Entretanto, no mesmo período, a proporção entre pessoas negras foi na direção oposta, com um aumento de 12,9%.
No caso dos óbitos causados por doenças decorrentes da AIDS, a mesma desproporção existe.
Entre 2010 e 2020 houve uma queda de 10,6% na proporção de óbitos de pessoas brancas e o crescimento de 10,4% entre pessoas negras.
“Esta é uma situação inaceitável, que demonstra o impacto direto das desigualdades e do racismo estrutural na vida de milhares de pessoas que têm todo o direito de se beneficiar dos avanços na resposta ao HIV e à AIDS”, defende Claudia Velasquez, diretora e representante do Unaids no Brasil.
Barreiras
Especialistas e ativistas reforçam que, mesmo com o avanço dos medicamentos disponíveis, a discriminação contra grupos vulneráveis e pessoas que vivem com HIV reduz o acesso à saúde, impede o diagnóstico precoce e causa mortes por aids que poderiam ser evitadas com tratamento.
Em mensagem divulgada para marcar a data de combate à doença, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou que o mundo ainda está distante de eliminar a Aids até 2030 e afirmou que as desigualdades perpetuam a pandemia da doença.
“São necessárias melhores legislações e a implantação de políticas e práticas voltadas para eliminar o estigma e a discriminação que afetam as pessoas que vivem com HIV, sobretudo aquelas em situação de vulnerabilidade. Todas as pessoas têm o direito de ser respeitadas e incluídas”, ressaltou.
Segundo o Unaids, 38,4 milhões de pessoas viviam com HIV em todo o mundo em 2021. Esse contingente é superior à população do Canadá ou à soma de todos os habitantes dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
No Brasil, o número de pessoas vivendo com HIV passava de 900 mil no ano passado, de acordo com o Ministério da Saúde, e, desse total, cerca de 77% tratavam a infecção com antirretrovirais.
A efetividade do tratamento disponível gratuitamente no país é reiterada pelo percentual de 94% de pessoas com carga viral indetectável entre as que fazem uso dos medicamentos contra o HIV. Quando o paciente em tratamento atinge esse nível de carga viral, ele deixa de transmitir o HIV em relações sexuais.
Desde o início da pandemia de Aids, em 1980, até dezembro de 2020, o Brasil já teve mais de 1 milhão de casos da doença, que causaram 360 mil mortes. A taxa de detecção vem caindo no Brasil desde o ano de 2012, quando houve 22 casos para cada 100 mil habitantes. Em 2020, essa proporção havia chegado a 14,1 por 100 mil, o que também pode estar relacionado à subnotificação causada pela pandemia de covid-19.
HIV ou Aids?
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um agente infeccioso que pode entrar no corpo humano por meio do sexo vaginal, oral e anal sem camisinha; por meio do uso de seringas e outros objetos cortantes ou perfurantes contaminados; pela transfusão de sangue contaminado; e da mãe infectada para seu filho durante a gravidez, o parto e a amamentação, se não for realizado o tratamento preventivo.
Quando se instala no corpo humano, esse vírus tem um tempo prolongado de incubação, que pode durar vários anos, e sua atividade ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo.
Se essa infecção não for detectada e controlada a tempo com o uso de antirretrovirais, o HIV pode enfraquecer as defesas do corpo humano a ponto de causar a Síndrome da Imunodeficiência Humana (aids).
Portanto, a sigla HIV se refere ao vírus, e a sigla Aids, à doença causada pelo agravamento da infecção pelo HIV.
Prevenção
O uso de preservativos masculinos e femininos e gel lubrificante estão entre as principais ações preventivas contra o HIV.
Também já estão disponíveis a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que consiste no uso de antirretrovirais para prevenir a infecção caso a pessoa venha a ser exposta ao vírus, e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), que pode impedir a infecção caso seja administrada até 72 horas após a exposição.
Mesmo no caso de haver uso dessas profilaxias, a camisinha continua importante, pois previne também outras infecções sexualmente transmissíveis, como a sífilis e as hepatites virais.
Ao menos 30 dias após uma possível exposição ao HIV, é fundamental fazer um teste para a detecção do vírus, exame que pode ser realizado em unidades da rede pública e nos centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). O diagnóstico precoce da infecção e o início rápido do tratamento protegem o sistema imunológico da pessoa infectada, já que esse será o alvo do HIV quando a carga viral aumentar.
Tratamento
Diretor médico associado de HIV da GSK/ViiV Healthcare, Rodrigo Zilli explica que os antirretrovirais usados hoje para o tratamento das pessoas que vivem com HIV são menos tóxicos para o corpo humano, causam menos efeitos colaterais e são administrados em quantidade bem menor de comprimidos.
A farmacêutica é a fornecedora do Dolutegravir e outros medicamentos usados no Sistema Único de Saúde (SUS) para combater o vírus. Desde 1996, o Brasil distribui gratuitamente os antirretrovirais a todas as pessoas que vivem com HIV e necessitam de tratamento, contando atualmente com 22 medicamentos em 38 apresentações farmacêuticas diferentes.
“O tratamento hoje é muito menos tóxico. Nem se usa mais a palavra coquetel, porque não é um conjunto enorme de remédios como se tinha antigamente. E, se a pessoa descobre o HIV a tempo de não ter desenvolvido a imunodeficiência, ela tem chance muito grande de ter uma vida totalmente normal tomando remédios diariamente”, afirma o infectologista.
Zilli reforça que a pessoa com HIV pode ter expectativa de vida até maior do que pessoas que não foram infectadas pelo vírus. “Essa pessoa que está em tratamento está acompanhando todas as doenças praticamente. Então, ela faz exames periódicos, faz exames periódicos, tem aconselhamento para manter um estilo de vida saudável, e acaba podendo ter uma vida mais saudável do que alguém que não tem HIV e não faz acompanhamento médico”.
Mesmo com esses avanços no tratamento contra o HIV e a disponibilidade gratuita dos medicamentos, o acesso à saúde ainda é marcado por desigualdades, pondera Zilli. “Por mais que se tenha um programa 100% público, o acesso à informação e aos serviços não é totalmente igualitário”, lembra o infectologista.
Discriminação e exclusão social
O coordenador do Grupo Pela Vidda-RJ, Márcio Villard, avalia que o combate terapêutico à Aids avançou mais do que a superação dos preconceitos que afetam as pessoas que vivem com HIV. Mesmo com medicamentos menos tóxicos e uma expectativa de vida maior, questões sociais afastam pessoas com HIV de uma vida plena.
“Quando a gente fala em qualidade de vida, não pode entender somente a questão terapêutica e biomédica. É preciso também entender as questões sociais que envolvem a pessoa com HIV, porque enfrentamos ainda muitos problemas relacionados a estigmas, preconceitos e exclusão social que interferem na qualidade de vida”, afirma.
“O que acontece é que o HIV sempre traz consigo uma condenação. De alguma forma, a sociedade vai te condenar, seja pelo seu estilo de vida, seja pela sua orientação sexual, seja por você pertencer a um determinado grupo da sociedade. Praticamente ninguém escapa, até uma criança que nasce com HIV será estigmatizada por isso. Infelizmente, esse cenário não mudou”, lamenta Villard.
O ativista explica que a estigmatização das pessoas com HIV tem raízes ligadas à LGBTfobia, já que os primeiros surtos de HIV se deram na população homossexual, bissexual e transexual nos Estados Unidos, e a imprensa da década de 80 reforçou a associação entre a população LGBTI e o HIV, chamando a aids até mesmo de “câncer gay”.
“Isso começou nos Estados Unidos, se espalhou pelo mundo e acabou virando um selo. Aqui no Brasil, até o ano passado, homossexuais não podiam doar sangue, independentemente de ter ou não o vírus”.
O Pela Vidda-RJ foi fundado em 1989 pelo sociólogo e ativista Hebert Daniel e atua desde então na luta por direitos das pessoas que vivem com HIV.
Assistência jurídica
Entre as principais demandas atuais da população que vive com HIV, Villard conta que estão a assistência jurídica para garantir direitos previdenciários e trabalhistas.
Os problemas incluem processos seletivos que eliminam candidatos que testam positivo para HIV, enquanto essa testagem é vedada por lei em qualquer exame admissional, periódico ou demissional.
Fora esses direitos, as pessoas com HIV também procuram a organização não governamental para receber acolhimento afetivo.
“A maior dificuldade ainda é a questão do estigma. Quando a pessoa tem esse diagnóstico, ela tem dificuldade de lidar com ele. E, ao se colocar para a família, no trabalho e para os amigos, vai enfrentar discriminação. São raros os casos em que a pessoa consegue viver tranquilamente, independentemente de sua sorologia”, explica Villard.
Angústia e cura
A dificuldade de encontrar informação e acolhimento depois do diagnóstico foi o que moveu o influenciador João Geraldo Netto a compartilhar sua experiência na internet desde 2008.
“Inicialmente, eu falava de uma maneira mais oculta, não falava especificamente que eu vivia com o vírus. Mas aí eu senti a necessidade de falar sobre isso mais abertamente. Eu descobri que, falando, eu me curava de certa forma. Sentia algo muito positivo quando falava sobre os dramas, os medos que eu tinha de fazer tratamento, de morrer, de adoecer. E eu vi que aquilo era muito bem recebido. Isso foi me dando força”, conta.
O jornalista acrescenta que a maioria das pessoas que entram em contato nas redes sociais está angustiada, seja porque acredita que se expôs ao risco de infecção ou porque já recebeu o diagnóstico e está tentando lidar com ele.
Acolhimento
João Geraldo acredita que o peso social do HIV afasta as pessoas do teste e do diagnóstico precoce, porque muitas não se percebem parte de um suposto grupo social que poderia ser infectado e outras preferem não saber o resultado do teste por medo.
“A questão do preconceito é algo tão forte que atrapalha de fazer o teste, de procurar ajuda e tratamento e impede que a pessoa tome o medicamento todo dia. Então, o grande problema do HIV hoje não é mais um problema clínico, é um problema social”, diz.
“As pessoas que chegam ao meu canal mais angustiadas são aquelas que passaram por situação que consideram moralmente errada e acreditam que é uma punição para elas. E a pior punição que elas conseguem imaginar é uma doença como a Aids. Então, isso é muito doloroso, sabe? Porque você vê que está conversando com uma pessoa que acha que a pior coisa que pode acontecer na vida é o que você tem”, desabafa.
Em suas postagens nas redes sociais, o influenciador comenta sobre HIV e temas do dia a dia e de sua vida pessoal, como fotos de viagens, reuniões com amigos e declarações de amor ao namorado. Em um de seus perfis, chamado "Super Indetectável", ele deixa a seguinte mensagem: “Respira fundo! Pela frente ainda tem muito mundo. Agora pode não estar, mas tudo pode ficar bem”. Unaids, Unaids, Unaids, Unaids, Unaids
*Com informações da Unaids e reportagem da Agência Brasil.
Fonte: Extra Classe
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