O diagnóstico ainda é cercado por preconceito e desinformação, o que gera medo de compartilhar o status da condição. Entenda o que diz a lei e veja o depoimento de quem vive com HIV.
Por Isabelle Manzini - O diagnóstico ainda é cercado por preconceito e desinformação, o que gera medo de compartilhar o status da condição. Entenda o que diz a lei e veja o depoimento de quem vive com HIV.
Em 2015, o ator Charlie Sheen, famoso pelo seriado “Two and a half men”, revelou viver com o vírus HIV em um dos programas de maior audiência dos Estados Unidos, o “Today’. A decisão de compartilhar o diagnóstico com o público aconteceu quatro anos após a descoberta.
Embora o episódio tenha jogado luz na discussão, a motivação não foi positiva: Charlie tornou pública sua sorologia após anos de ameaças e extorsões. Com medo de que a imprensa tivesse acesso a uma informação tão pessoal, o ator decidiu romper o círculo de chantagens e falar por si mesmo.
Em São Paulo, um estudo realizado por entidades como PUCRS, UNAIDS e Gestos -Soropositividade, Comunicação e Gênero, mostrou que 80,7% das pessoas diagnosticadas com HIV têm dificuldade em compartilhar seu diagnóstico. Ouvir comentários discriminatórios e fofocas a respeito da informação seria a principal motivação para ocultar o diagnóstico do próprio ciclo social.
Além disso, há ainda o medo de perder não apenas as relações pessoais, mas também o emprego. De acordo com o levantamento, foi o que ocorreu com 16,6% dos entrevistados.
A principal inimiga no avanço do diálogo aberto e da prevenção contra o HIV é a desinformação. Embora o vírus tenha começado a circular ainda nos anos 1980, até hoje é comum ouvir informações erradas sobre as formas de transmissão, sintomas e tratamentos disponíveis.
Aliás, vale lembrar que receber o diagnóstico do HIV hoje não é a mesma coisa que recebê-lo há 30 anos. A medicina avançou, e com ela, as ferramentas disponíveis aos soropositivos (nome dado a quem vive com HIV) para se viver uma vida plena e com qualidade.
O que diz a lei?
Todo esse cenário explica o porquê da garantia do sigilo da soropositividade – ou seja, do status de uma pessoa em relação a ser ou não HIV-positiva – ser tão importante para que essas pessoas possam manter também uma vida social digna.
No Brasil, desde 2022, foi sancionada a Lei 14.289, que proíbe a divulgação por agentes públicos ou privados de informações de saúde que permitam a identificação de pessoas com HIV, hepatites crônicas (HBV e HCV), hanseníase e tuberculose.
Dessa forma, o sigilo se tornou obrigatório no âmbito dos serviços de saúde – que devem se organizar de forma que os atendimentos ocorram sem que essa informação seja exposta ao público geral no local –, nos estabelecimentos de ensino, nos locais de trabalho, na administração pública, na segurança pública, nos processos judiciais e nas mídias escrita e audiovisual. As operadoras de planos privados de saúde também estão obrigadas a proteger as informações.
Há exceções?
No caso de tratamentos odontológicos, que são mais invasivos e podem agravar quadros infecciosos, é necessário compartilhar a informação com o profissional com antecedência, como explica Antília Reis, advogada especializada em pessoas vulneráveis.
“Sendo este um paciente imunodeprimido, alguns cuidados especiais devem ser tomados com esse paciente, como por exemplo cobertura antibiótica após exodontias (processo de extração de dentes). Por isso, a ficha de atendimento dos dentistas deve ser bem detalhada e na anamnese deve haver os questionamentos sobre o HIV. A obrigatoriedade do sigilo do profissional sobre a condição do paciente se mantém.”
De acordo com a profissional, não há nenhuma legislação no país que obrigue uma pessoa a informar o seu status sorológico para suas parcerias sexuais ou afetivas.
“Vale lembrar que a prevenção da transmissão das infecções sexualmente transmissíveis (IST) é uma responsabilidade compartilhada. Todos que têm vida sexual ativa devem tomar as cautelas necessárias, como uso de preservativo, independente de viver com HIV ou não.”
Porém, o cenário legal muda, caso seja constatado que a pessoa que vive com HIV omitiu a informação e propositalmente teve uma relação sexual sem proteção, seja ela duradoura ou casual. Isso porque pode haver a interpretação de que houve uma intenção na transmissão.
“Se for comprovado que a pessoa que vive com HIV já sabia da sua sorologia no momento da relação não protegida, ela pode responder por crime. Os tribunais têm entendido que a ocultação viola os direitos constitucionais da vítima. Se a pessoa HIV-positiva desconhece sua condição, não poderá ser responsabilizada na esfera criminal ou cível, visto que não existiu a intenção de transmitir o vírus HIV”, explica a advogada.
HIV e relacionamentos afetivos e sexuais
Um medo comum a quem recebe o diagnóstico parece ser o momento de compartilhá-lo com parceiros e parceiras sexuais ou afetivos. Afinal, como e quando contar?
A dra. Carla Kobayashi, médica infectologista, orienta. “O paciente pode buscar apoio do seu médico e da sua equipe multidisciplinar (psicólogos, terapias em grupo). Nesse momento, é importante informar o máximo possível sobre a doença, acolhendo todas as angústias do companheiro ou companheira e apoiando a outra pessoa a realizar a testagem também (em caso de ser um relacionamento pré-existente ao diagnóstico).”
Um dos pontos mais importantes, se você decidir compartilhar a sua sorologia, é informar se você está ou não indetectável e do que trata essa terminologia.
“Em companhia do seu médico, é possível explicar as múltiplas estratégias de prevenção combinada para casais sorodiscordantes [quando uma pessoa vive com o HIV e outra não]. A mais importante é o I=I, que significa: Carga viral indetectável é igual a intransmissível. Ou seja, a pessoa vivendo com HIV com tratamento antirretroviral regular e carga viral indetectável NÃO transmite o vírus.
Outra estratégia que pode ser adotada é a Profilaxia Pré-Exposição (PreP), extremamente eficaz e segura na prevenção da infecção pelo HIV com uso contínuo de antirretrovirais”, explica a médica. (Veja sobre a PreP aqui.)
João Geraldo Netto, estrategista em marketing digital, especialista em sexualidade e ativista, é um dos pioneiros no país a discutir publicamente a importância do diagnóstico e do tratamento para quem vive com o HIV. Ainda em 2008, lançou o canal “Super Indetectável” para falar sobre o tema, e já realizou trabalhos que contribuíram muito para os avanços sociais sobre o HIV.
Ele compartilhou como foi o impacto inicial da descoberta do diagnóstico nas suas relações afetivas e sexuais.
“O período em que me descobri vivendo com HIV foi muito complexo. Um pensamento muito comum para as pessoas que se veem com uma infecção sexualmente transmissível, que pode ser fatal, é a ideia de abstinência, de não transar mais com ninguém. Foi o que passou pela minha cabeça também.”
Ele relembra que, apesar de saber que a camisinha protegeria, houve um medo muito grande de transmitir o vírus para o seu marido na época. “O sexo passa a ser algo receoso, que tá o tempo todo dando medo. Para de ser algo prazeroso, principalmente se a pessoa estiver dentro de um relacionamento, pois há ainda a questão de compartilhar o diagnóstico e saber se o companheiro ou companheira também tem o vírus. Há toda uma complexidade e o medo de uma possível rejeição”, divide João.
Há fórmula certa para compartilhar o diagnóstico?
Sobre como compartilhar o diagnóstico com um parceiro ou parceira afetivo ou sexual, João Geraldo conta o que funcionou para ele.
“Não há uma receita de bolo. Dentro do meu lugar de privilégio, de ainda ser um homem branco, que conseguiu trabalhar e ter acesso a lugares bacanas, funcionou para mim sempre ser muito aberto. Eu falo sobre isso na internet, então quando uma pessoa me conhece e entra no meu Instagram, ela vai ver algo ali, o que acaba me poupando de ter que ter uma conversa para revelar isso.”
Diego Krausz, ator e produtor de conteúdo, também decidiu se juntar aos influencers que falam abertamente sobre como é viver com HIV. Diego recebeu o diagnóstico aos 28 anos, em 2018. Hoje ele tem 32 anos. No seu perfil no Instagram, é possível encontrar um destaque com a legenda “HIV +”, onde o ator compartilha um pouco da sua rotina de exames, medicamentos, reflexões e conteúdos complementares sobre o tema. Ele relembra como foi receber a informação de que havia testado positivo para HIV.
“No primeiro momento, eu foquei em começar meu tratamento e em acertar as questões médicas para que eu ficasse bem e, a partir daí, me sentisse bem para voltar a me relacionar com pessoas, sexualmente ou afetivamente. Me tornei indetectável um mês e meio após o meu diagnóstico e voltei a ter relacionamentos a partir daí.”
Como sua sorologia é pública, o produtor de conteúdo raramente precisa passar de novo pela situação de contar pela primeira vez a um parceiro afetivo ou sexual sobre sua sorologia. Mas isso não o impede de entender todo o medo e insegurança em torno do compartilhamento do diagnóstico, que tanto impactam algumas pessoas que vivem com HIV.
“Quanto mais a gente fala [sobre viver com o HIV], mais fácil fica. Eu entendo quem tem medo de contar e a relação terminar. Quando há esse medo muito grande, o que eu recomendo é contar todas as informações de uma vez: já falar se está em tratamento, se está indetectável, explicar o que é cada termo. A gente só vai solucionar o tabu do HIV com informação.”
Krausz também fala sobre a importância e necessidade do acolhimento da pessoa soropositiva que escolhe compartilhar sua sorologia com o parceiro, parceira, familiares ou amigos. “É preciso compreender que a escolha de contar o diagnóstico é algo complexo. A gente tem medo de ser julgado, medo de perguntas como ‘por que você não me contou antes’ ou ‘você não confia em mim?’. É preciso que haja esse reconhecimento por parte dos entes queridos”, ressalta.
O fim do relacionamento é uma possibilidade real que deve ser encarada, mas Diego tem um recado para quem vivencia um rompimento dessa natureza. “Se mesmo depois de contar que você vive com HIV, a pessoa não se instruir e não tiver vontade de entender, eu falo que o término é um livramento. Se trata de uma pessoa preconceituosa e desinformada, que não vale a pena”, destaca Krausz.
“Se o rompimento acontecer, é possível também que ele esteja ligado a questões como falta de acolhimento, falta de compreensão, muito mais do que ao diagnóstico em si. É perfeitamente possível manter um relacionamento saudável em casais sorodiscordantes.”
Fonte: Drauzio Varella
A autora, Isabelle Manzini, é jornalista e analista de redes sociais. Interessa-se por assuntos relacionados à saúde mental, saúde da população negra e saúde LGBTQIA+.
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