Eu não sou remédio de maluco. Eu sou só uma pessoa que sente demais.
- João Geraldo Netto
- 30 de abr.
- 3 min de leitura
Meu nome é João Geraldo Netto*. Vivo com HIV há mais de duas décadas, e há quase tanto tempo venho utilizando o YouTube para compartilhar vivências, reflexões e informações sobre saúde, sexualidade, estigma e, mais recentemente, saúde mental. Essa trajetória me moldou – não apenas como ativista, mas como ser humano. Com todas as minhas camadas, dores e reconstruções.
Há dois anos e meio fui diagnosticado com transtorno de personalidade borderline (TPB). Como acontece com muita gente, esse diagnóstico chegou tarde. Foram mais de dez anos de busca por respostas, de terapias e consultas com psiquiatras. Entendo hoje que esse tempo de espera – e de sofrimento – não é incomum. Segundo dados da National Education Alliance for Borderline Personality Disorder (NEABPD), o tempo médio para que uma pessoa com TPB receba um diagnóstico correto é de cerca de 9 anos. Isso porque os sintomas podem se confundir com outros transtornos, e o estigma que os envolve muitas vezes atrasa ou impede uma escuta clínica qualificada.
O transtorno borderline não é uma sentença de inaptidão emocional, como certas representações na cultura pop sugerem. É, sim, uma condição de saúde mental séria, caracterizada por instabilidade emocional, impulsividade, distorções de autoimagem e relações interpessoais intensas. Mas não é sinônimo de maldade, de perigo ou de abuso. E muito menos de incapacidade para amar.
Recentemente, me deparei com uma música que viralizou nas redes sociais. A canção – de letra melodiosa, ritmo envolvente, mas conteúdo extremamente problemático – retratava uma figura com transtorno borderline como alguém instável, manipulador, perigoso. Alguém que “não precisa dos seus sentimentos, só de tratamento”. Aquilo me atravessou como um soco.
Sim, o borderline é intenso. Eu sou intenso. Sou extremo. Já fui mais instável, hoje estou mais tranquilo. Mas dizer que alguém com TPB não é capaz de amar ou que está fadado a relacionamentos tóxicos é uma violência. É como reduzir toda a complexidade humana de uma pessoa a um rótulo, um sintoma, um diagnóstico.
De acordo com o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o TPB é diagnosticado com base em nove critérios – entre eles, o medo intenso de abandono, padrões instáveis de relacionamentos, impulsividade, alterações de humor intensas, sensação crônica de vazio e episódios de raiva intensa. Mas é importante entender: nenhuma dessas características, por si só, define quem somos. E nenhuma delas significa que somos incapazes de manter relações saudáveis, se houver tratamento, cuidado, apoio e, principalmente, escuta.
Eu não isolo pessoas. Eu não aprisiono meus parceiros. Já vivi relações tóxicas, sim – como muita gente. Mas também vivi nove anos de um casamento saudável, com poucas discussões e muito respeito. Hoje, vivo em um trisal amoroso, aberto ao diálogo e ao cuidado mútuo. O que faz uma relação ser tóxica ou não é a dinâmica entre os indivíduos – e não o diagnóstico de um deles.
A música que me fez gravar esse vídeo traz a frase: “não deixe essa montanha-russa virar casamento”. E eu penso: que montanha-russa? O amor não é feito apenas de estabilidade; ele é feito de afeto, escuta, reciprocidade. Pessoas com TPB, como qualquer outra, precisam de carinho. Precisam ser vistas para além do transtorno.
É muito perigoso que uma música popular, amplamente compartilhada, transmita a ideia de que pessoas com borderline são um fardo. Isso reforça estigmas que tornam nossas vidas ainda mais difíceis. Isso desestimula a busca por diagnóstico e tratamento. Isso pode, inclusive, ser um gatilho para sentimentos de inadequação, isolamento e autodepreciação – que já são comuns entre pessoas com TPB. Um estudo publicado na Journal of Personality Disorders mostrou que o risco de suicídio entre pessoas com TPB é de até 10%, com cerca de 75% delas tendo feito pelo menos uma tentativa ao longo da vida.
Eu não sou remédio de maluco. E ninguém é. Essa frase – repetida como deboche – é uma forma de desumanizar quem sente demais. E eu sinto. Eu amo demais. Eu me frustro demais. Mas também sou empático demais. Tenho uma capacidade quase exagerada de me colocar no lugar do outro, de querer fazer com que quem está comigo cresça, floresça, vá além.
Por isso, escrevo esse texto como um apelo. A artistas, produtores de conteúdo, jornalistas, influencers: informem-se antes de falar sobre saúde mental. Um comentário aparentemente inofensivo pode perpetuar estigmas que custam vidas. E a quem vive com transtorno borderline, deixo aqui minha solidariedade. Não somos monstros, nem vítimas eternas. Somos apenas humanos em busca de compreensão, cuidado e afeto.
E se em algum momento nossas emoções explodem, se às vezes erramos, como todo mundo erra, que isso não seja motivo para nos reduzir a um rótulo. Somos inteiros. Somos muitos. E queremos apenas ser amados da mesma forma como amamos: intensamente.
*João Geraldo Netto é Estrategista de marketing digital, especialista em saúde sexual, mobilizador social, criador de conteúdo e fundador do Instituto Multiverso.
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