Tecnologia de mRNA abre novo caminho promissor para a cura do HIV: a revolução silenciosa das nanopartículas
- João Geraldo Netto
- há 2 dias
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Um estudo recente liderado por pesquisadores da Universidade de Melbourne, publicado na renomada revista Nature Communications, reacende as esperanças em torno da cura do HIV. A equipe desenvolveu uma estratégia inédita e altamente específica para revelar o vírus onde ele costuma se esconder: nas células T CD4+ em estado de latência. E o mais surpreendente é que a chave dessa abordagem está na mesma tecnologia de mRNA que revolucionou as vacinas contra a COVID-19, como as da Pfizer/BioNTech e da Moderna.
O desafio da latência: um obstáculo invisível
A principal barreira à erradicação do HIV é a sua capacidade de permanecer “adormecido” em células do sistema imunológico, especialmente nas células T CD4+ em repouso. Mesmo com o uso contínuo da terapia antirretroviral (TARV), que suprime a replicação ativa do vírus a níveis indetectáveis, essas células infectadas mantêm cópias do HIV em estado latente. Quando a TARV é interrompida, o vírus reaparece com força, restabelecendo a infecção.
Esse estado latente é difícil de ser acessado por medicamentos e invisível ao sistema imunológico. Por isso, uma cura funcional ou completa requer a identificação e eliminação dessas células reservatórias — algo que nenhum tratamento atual consegue fazer de forma segura e eficaz.
A estratégia “Chocar e Eliminar” (Shock and Kill)
O novo estudo avança sobre essa questão ao aplicar a estratégia conhecida como “shock and kill”. A proposta é simples na teoria, mas complexa na prática:
“Chocar” o HIV latente: forçar o vírus escondido a sair do seu estado de dormência e se manifestar dentro das células, tornando-se visível.
“Eliminar” as células infectadas: uma vez reativado, o vírus pode ser alvo do sistema imunológico ou de terapias adicionais que visem destruir as células portadoras.
A grande inovação deste estudo está na forma de “dar o choque”: por meio de mensageiros genéticos (mRNA) entregues de maneira eficiente às células T CD4+ por meio de nanopartículas lipídicas engenhosamente formuladas, chamadas LNP X.
LNP X: uma nova geração de nanopartículas terapêuticas
As LNPs (lipid nanoparticles) são minúsculas cápsulas compostas por lipídios que protegem e transportam moléculas de RNA mensageiro até o interior das células. Essa tecnologia se popularizou com as vacinas de mRNA contra a covid-19, mas os pesquisadores australianos foram além ao desenvolver uma nova versão, batizada de LNP X, com propriedades aprimoradas para o desafio do HIV:
É capaz de transfectar células T CD4+ em repouso, algo extremamente difícil com métodos tradicionais.
Apresenta altíssima eficiência de entrega de mRNA, com mais de 75% de sucesso em transfeccionar células primárias sem necessidade de ativação prévia.
Não causa ativação imune ou toxicidade, um ponto crítico, já que a ativação das células pode gerar efeitos colaterais graves.
Dois tipos de mRNA, dois caminhos para reativar o HIV
A LNP X foi utilizada para entregar dois tipos de mRNA, ambos com função de agentes reversores de latência (Latency Reversing Agents – LRAs):
Tat-LNP X: mRNA codificando a proteína Tat do HIV, uma das responsáveis por amplificar a transcrição viral. Ao ser produzida dentro da célula infectada, a Tat estimula fortemente a leitura e expressão dos genes do HIV, forçando o vírus a “acordar”. O estudo demonstrou que a Tat-LNP X conseguiu induzir a produção de RNA viral em níveis superiores ao padrão-ouro dos estudos in vitro (uso de mitógenos como PMA/PHA), sem ativar as células e sem causar toxicidade .
CRISPRa-LNP X: mRNA codificando elementos do sistema CRISPR de ativação (e não de corte), incluindo a proteína dCas9-VP64 e RNAs guias (gRNAs) desenhados para se ligar especificamente ao promotor do HIV. Isso age como um “interruptor” de alta precisão, ativando a transcrição do vírus sem interferir no DNA do hospedeiro. Embora tenha apresentado menor potência que a Tat-LNP X, a abordagem CRISPRa é altamente específica e abre caminho para futuras terapias de modulação genética.
Resultados laboratoriais: reativação robusta sem dano celular
Nos experimentos realizados com células de pessoas vivendo com HIV em tratamento, os cientistas observaram um aumento significativo na produção de transcritos virais de diferentes fases da transcrição do HIV — desde o início (TAR), passando pelo alongamento (Long-LTR e Pol), até a finalização e splicing (PolyA e Tat-Rev). O aumento de RNA viral no sobrenadante das culturas indica que houve produção de partículas virais após a reativação, algo essencial para que o sistema imunológico possa reconhecer e eliminar as células infectadas .
Importante ressaltar: tudo isso foi feito sem ativar as células T, o que evita inflamações, respostas autoimunes e outros efeitos indesejados que comprometem abordagens anteriores.
Limitações e próximos passos
Apesar dos resultados impressionantes, a técnica ainda não conseguiu eliminar completamente as células infectadas — o que é esperado nesta fase da pesquisa. A LNP X, especialmente com o mRNA da proteína Tat, mostrou-se capaz de reativar o HIV latente com alta eficácia, mas isso ainda não foi suficiente para provocar a morte das células infectadas ou reduzir significativamente a quantidade de DNA proviral intacto.
Por isso, os pesquisadores reconhecem que o próximo desafio será combinar a reativação com estratégias que facilitem a destruição das células-alvo — seja por terapias imunológicas, drogas pró-apoptóticas ou edição genética. Também estão em andamento preparativos para testes pré-clínicos em modelos animais, com vistas a futuras aplicações clínicas.
Além disso, investigações adicionais serão necessárias para avaliar a distribuição das nanopartículas no organismo, sua duração no sangue e potenciais respostas imunológicas sistêmicas.
Potencial além do HIV
A tecnologia das LNPs X tem potencial para ser usada em muitas outras doenças. As células T CD4+, onde o HIV se esconde, também estão envolvidas em diversos tipos de câncer e doenças autoimunes. A capacidade de entregar mRNA de forma segura e específica a essas células abre novas possibilidades terapêuticas que vão muito além da infecção pelo HIV.
“Esta descoberta não é apenas um passo em direção à cura do HIV, mas também uma prova de conceito de como a biotecnologia baseada em mRNA pode ser aplicada de maneira sofisticada e eficaz no combate a doenças complexas”, afirmou o virologista Michael Roche, coautor do estudo .
O estudo liderado por Cevaal, Lewin, Roche e equipe representa um marco na ciência do HIV. Ele demonstra que tecnologias desenvolvidas recentemente — como o mRNA e as nanopartículas lipídicas — podem ser adaptadas para desafios biomédicos de longa data, como a latência do HIV. Ainda que a cura total não esteja imediatamente ao alcance, essa nova abordagem traz uma esperança real e concreta de que estamos cada vez mais próximos de desmontar, peça por peça, o complexo quebra-cabeça da erradicação do HIV.
A ciência, como o HIV, também evolui silenciosamente — mas, neste caso, para o bem.
Fonte: Cevaal, P.M., Kan, S., Fisher, B.M. et al. Efficient mRNA delivery to resting T cells to reverse HIV latency. Nat Commun 16, 4979 (2025). https://doi.org/10.1038/s41467-025-60001-2. Disponível no link https://acesse.one/fVHOI