Sexo sóbrio: mulheres contam como é "reaprender a transar" e ter prazer sem álcool
- João Geraldo Netto
- 8 de jun.
- 6 min de leitura

Desde a primeira vez que Helena*, 40 anos, teve contato com o sexo — na adolecência — esteve sob uso de substâncias. Na época, segundo ela, era um “consumo social” de álcool e maconha. Na fase adulta, avançou para a cocaína e o crack. “Nesse período fiz sexo poucas vezes porque realmente quis. Cheguei a ser abusada e obrigada a transar. Até fui confundida com uma garota de programa”, lembra. Helena chegou a ser internada mais de uma vez até finalmente atingir a sobriedade, que completou oito anos recentemente. “Faço terapia até hoje para tratar da sensação que ainda sinto, de que o sexo antes era mais fácil ou mais fluido. Ainda sonho constantemente que estou fazendo sexo sob o efeito das drogas”, revela.
As primeiras vezes em que experimentou o sexo sóbrio foram como novas perdas de virgindade. “Foi assustador. Não sabia como agir sem ter as drogas guiando minhas ações. Percebi que o sexo é uma descoberta que se faz entre duas pessoas e só com o tempo vai melhorando.”
Falar das experiências com sexo sóbrio ganha ainda mais relevância quando dados recentes apontam uma mudança no comportamento dos brasileiros em relação ao álcool. Uma pesquisa do Datafolha, que ouviu 1.900 pessoas, revelou que 53% dos entrevistados reduziram a ingestão de álcool no último ano. O principal motivo por trás dessa decisão, citado por 34% dos entrevistados, foi a preocupação com a saúde. Esse movimento por um consumo consciente abre caminho para uma discussão sobre como essa mudança pode transformar o lugar em que posicionamos o sexo — quem nunca quis tomar algumas taças de vinho antes de transar com uma pessoa nova?
Na Austrália, por exemplo, já é possível perceber uma pequena queda no desejo de transar bêbado. Uma pesquisa da marca de brinquedos eróticos Lovehoney, com dados de 2023, elencou que enquanto 69% dos australianos admitem que já fizeram sexo sob efeito de álcool, 51% preferem transar sóbrios.
‘Dei um reset na vida sexual ao parar de beber para transar’

A psiquiatra Alessandra Diehl, especializada em sexualidade humana e dependência química, diz que muitas mulheres que não são dependentes de substâncias — mas o usam para dar uma “ajudinha” na desinibição — optam pelo sexo sóbrio para buscar uma experiência de conexão maior com as parcerias, para cuidar da saúde e se preservar diante a possíveis situações traumáticas.
“Elas querem se sentir mais presentes e no domínio da situação, até para optar por outros tipos de práticas durante o sexo sem ter um prejuízo de consciência depois”, explica. Diehl também enxerga essa decisão como um movimento de contracultura, vindo de algumas mulheres que têm percebido que o álcool é prejudicial à saúde e que pode levar a vários problemas de saúde, desde cirrose a cânceres.
Presidente da Associação Alcoolismo Feminino, Grazi Santoro, 56 anos, passou por situações parecidas com as de Helena durante os anos em que foi adicta. “Sempre usei álcool justamente para me sentir mais desinibida no sexo. Me sentia poderosa, achava que poderia fazer tudo o que queria”, conta. Sóbria há 16 anos, entende que tinha o direito de fazer tudo com seu corpo, desde que estivesse consciente — o que não acontecia tanto. “Dos 29 aos 38, era como se eu estivesse em Nárnia. Me sentia abduzida, quase sempre estava inconsciente. Acordava na cama do lado de uma pessoa e nem sabia se tinha transado ou não.”
“Uma vez, acordei e tinha um cara desconhecido cuspindo no meu corpo. Levei um susto com aquele homem em pé atrás de mim. Empurrei ele para trás. Por muita sorte ele não forçou nada comigo”, lembra.
Grazi chegou a frequentar reuniões de 12 passos, o famoso Alcoólicos Anônimos. Passou anos tentando deixar o álcool para trás. Foi só depois de ser espancada por um ex-parceiro que resolveu seguir com o tratamento. “Nas vezes que transei sem beber, logo que comecei a ficar sóbria, foi louco porque parecia que ainda estava alcoolizada, como se tivesse perdido a vergonha de vez. Só depois de um tempo que passei a descobrir os lugares em que sentia prazer. Percebi que gostava de certas posições e de sexo anal mesmo sóbria. Fui me entendendo melhor.”
Flávia Bettini, 45 anos, conta que parar de beber foi, inclusive, a chave para redescobrir sua orientação sexual. “Percebi que o sexo que realmente me satisfazia era com outras mulheres. Me descobri lésbica”, diz. “Tive um ganho enorme na minha autoestima. Foi como se tivesse dado um reset na minha vida sexual.”
Ela conta que nas primeiras vezes o sexo foi estranho, por perceber que tinha a plena atenção em todos os detalhes. “Hoje me sinto presente com a pessoa que está comigo. É muito bom não ter nenhuma influência externa, o sexo fica muito mais incrível. O álcool é um anestésico que bagunça o cérebro da gente.”
No caso das que têm dependência — como Helena e Grazi —, a motivação para buscar sobriedade vem, também, da vontade de lembrar o que viveram. “Muitas falam que não sabem se tiveram uma experiência boa ou ruim, ou que não se lembram nem com quem transaram. Também podem ter se submetido a violências que têm interfaces muito próximas do estupro, por transarem com pessoas a quem não disseram um ‘sim’ consciente”, ressalta Diehl.
No caso de Helena, a decisão pelo sexo sóbrio veio como uma consequência da sua sobriedade como um todo. No início do tratamento, ficou um bom tempo sem transar. Quando voltou a se abrir sexualmente, escolheu sempre pessoas sóbrias para isso.
“Ter consciência do que eu estou fazendo mudou muito a forma como transo. Algumas vezes, ainda me sinto um pouco travada. Tenho saudade da facilidade que as drogas traziam para o sexo, mas hoje transo pensando no meu prazer e no conforto que eu e minha parceria vamos sentir. Sinto que as sensações no orgasmo ficaram mais fortes e intensas”, conta Helena.
O sexo sóbrio é uma tendência?
Por mais que pareça estar se popularizando, o sexo sóbrio ainda não pode ser considerado uma tendência, explica Diehl. No consultório, ela vê que muitas pessoas ainda enxergam álcool e/ou drogas + sexo como uma forma de ampliar a conexão, libido, entrega e relaxamento — principalmente em quem tem adicção. “Na verdade, o corpo é plenamente capaz de chegar nisso sem explorar nenhuma substância.”
Uma forma conhecida de sexo com uso de substâncias é o chemsex, chamado também de sexo químico ou aditivado. Por mais que a prática seja mais relacionada a homens que transam com homens, João Geraldo Netto, coordenador geral do Instituto Multiverso, ONG que estuda sexo químico e redução de danos, aponta que mulheres também podem buscar por álcool e outras drogas para amplificar o prazer.
Há, no entanto, uma diferença dos gêneros no tipo de droga buscada. Entre homens cis hétero, a cocaína é mais usada. Homens gays (ou que se relacionam com homens, mas se reconhecem enquanto hétero) recorrem, principalmente, ao poppers (um líquido inalável que causa relaxamento), MDMA/ecstasy e metanfetamina. Já mulheres cis são mais adeptas do álcool por causar desinibição, ao mesmo tempo em que relaxa.
Se na hora parece bom, a longo prazo não é. Diehl diz que o uso contínuo das substâncias podem acarretar, pouco a pouco, em “diminuição da libido, disfunções sexuais (como dificuldade de ereção no caso de homens cis e mulheres trans) e a dificuldade de ter um orgasmo e lubificação da vagina”.
Com funciona o tratamento para chegar ao sexo sóbrio?
Para quem tem dificuldade de conseguir encarar o sexo sem álcool, Diehl afirma que é possível trabalhar o tema em terapia, e recomenda as abordagens cognitivo-comportamental ou com foco em traumas. Em casos mais graves, pode ser considerado um processo de desintoxicação — há desde tratamentos medicamentosos até a possibilidade de internação,que deve ser escolhida voluntariamente.
Encontros em grupos de 12 passos podem ajudar, mas é necessário que sejam ambientes seguros para que mulheres possam falar de suas experiências. “Imagina quando uma mulher chega num grupo majoritariamente masculino e diz ‘Já transei sob efeito de drogas’, ‘Troquei sexo por droga’? Mesmo que muitos homens tenham vivido situações semelhantes, o peso social para as mulheres é muito maior”, diz Diehl.
Foi por sentir falta desse espaço seguro e entender que as mulheres não tinham essa alternativa que Grazi criou, há cinco anos, a Associação Alcoolismo Feminino. Com mais de 30 mil seguidoras no Instagram, o coletivo online traz uma equipe multidisciplinar para dar apoio em várias áreas — inclusive a saúde sexual. “A sexualidade é uma pauta muito forte dentro dos grupos e damos muita importância a isso para ajudar essas mulheres.”
*O nome foi alterado para preservar a identidade da personagem.
Por: Isadora Marques, em colaboração
Fonte: Marie Claire
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