
A recente absolvição da cantora gospel e pastora Ana Paula Valadão pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) reforça uma preocupante tendência no Brasil: a conivência do sistema judiciário com discursos de ódio travestidos de liberdade religiosa. Em 2016, durante um culto transmitido pela Rede Super, ligada à Igreja Batista da Lagoinha, a pastora declarou que a homossexualidade "não é normal" e que a aids seria uma consequência dessa prática. Inicialmente condenada a pagar uma indenização por danos morais coletivos, sua sentença foi revertida, gerando indignação entre ativistas e defensores dos direitos humanos (UAI, 2025).
A decisão do TJDFT expõe um problema grave: a falta de punição exemplar para discursos discriminatórios cria um ambiente de permissividade, onde novas ofensas e ataques se tornam cada vez mais comuns. Esse tipo de posicionamento judicial não apenas minimiza a gravidade das falas preconceituosas, mas também incentiva a continuidade da violência verbal e simbólica contra a população LGBTI+ e pessoas que vivem com HIV.
O discurso que associa a aids à homossexualidade não é apenas errado cientificamente, mas também prejudicial à saúde pública. Desde a epidemia da doença nos anos 1980, o estigma impulsionado por narrativas como a de Ana Paula Valadão tem dificultado o acesso à informação, prevenção e tratamento para milhares de pessoas. O Unaids estima que a suspensão do financiamento dos Estados Unidos para programas globais de HIV pode resultar em mais de seis milhões de mortes até 2029, um retrocesso sem precedentes na luta contra a epidemia (Veja, 2024). O preconceito, quando institucionalizado e não combatido, afeta diretamente políticas de saúde pública e coloca milhões de vidas em risco.
A liberdade religiosa é um direito fundamental, mas não pode ser usada como justificativa para discursos de ódio e desinformação. A decisão do desembargador Eustáquio de Castro, que alegou não haver intenção ofensiva na fala da pastora e que apenas "uma frase resvalou em um possível excesso", revela a leniência com que a Justiça brasileira trata esse tipo de discurso (UOL, 2025). A ausência de punição rigorosa dá margem para que outros líderes religiosos continuem disseminando preconceitos sem qualquer consequência.
O caso de Ana Paula Valadão é um exemplo emblemático de como figuras públicas que ocupam espaços de influência podem reforçar estereótipos nocivos sob o pretexto de professar sua fé. No entanto, a liberdade de crença não é um salvo-conduto para atacar minorias. A responsabilização judicial deveria servir como um freio para manifestações discriminatórias, e não como um incentivo à impunidade.
A Aliança Nacional LGBTI+ já anunciou que recorrerá ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter essa decisão e garantir os direitos fundamentais da população LGBTI+ brasileira. O caso não deve ser tratado como um episódio isolado, mas sim como um alerta para a necessidade de um judiciário que atue em defesa dos princípios constitucionais de igualdade e dignidade humana.
O combate à discriminação exige uma mobilização ampla da sociedade civil, pressionando instituições e exigindo respostas firmes contra retrocessos. A omissão do Estado na responsabilização de discursos de ódio fortalece a intolerância e fragiliza a democracia. Se a Justiça continuar permitindo que declarações como as de Ana Paula Valadão sejam feitas sem consequências, o Brasil seguirá um caminho perigoso de normalização da violência contra minorias.
A história nos mostra que a inação diante da intolerância pode ter consequências devastadoras. Cabe a todos nós, enquanto sociedade, impedir que a impunidade seja o combustível para a perpetuação do preconceito.
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