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AST: um caminho possível para silenciar o HIV e mudar a história da aids

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AST - um caminho possível para silenciar o HIV e mudar a história da aids

Por João Geraldo Netto: Nos últimos quarenta anos, milhões de pessoas no mundo inteiro ouviram a mesma sentença ao receber o diagnóstico de HIV: “você terá que conviver com esse vírus para sempre”. A chegada da terapia antirretroviral transformou a infecção pelo HIV em uma condição crônica controlável, permitindo que pessoas vivendo com HIV, como eu, pudessem retomar a vida, sonhar, amar, trabalhar e envelhecer. Mas, mesmo com todos os avanços, uma pergunta sempre volta à tona: será que algum dia teremos uma cura?


A resposta definitiva ainda não existe. Mas a ciência tem avançado em direções que até pouco tempo atrás pareciam ficção científica. Uma dessas direções foi apresentada em maio de 2025 por um grupo de pesquisadores ligados a universidades como Johns Hopkins e Massachusetts General Hospital. O estudo, publicado na revista Science Advances, trouxe um conceito novo e poderoso: o AST (antisense transcript), uma molécula produzida pelo próprio HIV, que pode ser usada para manter o vírus em silêncio profundo, sem se reativar.


Pode parecer paradoxal (usar algo que vem do próprio vírus contra ele), mas é justamente isso que torna essa descoberta tão promissora. Aqui, vou compartilhar de forma acessível o que essa pesquisa significa, por que ela é importante e como pode impactar o futuro das pessoas vivendo com HIV.


O que é o tal “AST”?


Para entender o AST, precisamos voltar a um conceito-chave da biologia: latência do HIV. Quando o vírus entra no corpo, ele se integra ao DNA das nossas células de defesa, principalmente os linfócitos CD4. É como se ele plantasse uma semente no genoma. Essa semente pode ficar “adormecida”, silenciosa, sem produzir novas cópias do vírus. Mas, em certas situações, ela desperta, voltando a produzir partículas virais.


Os medicamentos atuais conseguem bloquear a replicação do HIV, mas não eliminam essas sementes. É por isso que, ao interromper o tratamento, o vírus reaparece.


O AST (sigla para antisense transcript) é um RNA produzido pelo HIV na direção oposta da leitura do seu genoma. Ele não gera proteínas, mas age como um “guia” para recrutar proteínas do próprio hospedeiro que fecham a região onde o vírus está integrado, mantendo-a inacessível. É como se o AST ajudasse a trancar a porta e esconder a chave.


No estudo, os cientistas mostraram que, quando o AST é produzido artificialmente em células de pessoas vivendo com HIV em tratamento, ele consegue impedir que estímulos externos despertem o vírus. Em outras palavras: mesmo quando os pesquisadores tentaram reativar o HIV em laboratório, as células que receberam o AST permaneceram em silêncio.


A estratégia “chutar e matar” versus “bloquear e trancar”


Durante muitos anos, a principal linha de pesquisa para a cura do HIV foi o chamado “chutar e matar” (kick and kill). A ideia era simples: acordar o vírus adormecido com drogas conhecidas como agentes de reversão de latência e, em seguida, eliminá-lo com a ajuda do sistema imunológico ou de terapias complementares.


Mas na prática essa estratégia não trouxe os resultados esperados. A reativação foi parcial, o sistema imunológico não conseguiu dar conta de matar todas as células infectadas, e os reservatórios permaneceram intactos.


O estudo sobre o AST aposta em outra lógica: o “bloquear e trancar” (block and lock). Em vez de tentar acordar o vírus, a ideia é mantê-lo para sempre em silêncio, impedindo qualquer reativação. Seria como condenar o HIV a uma prisão perpétua dentro do DNA, sem chance de fuga.


Essa mudança de paradigma é significativa. Se conseguirmos manter o vírus latente de forma permanente, pessoas vivendo com HIV poderiam eventualmente suspender a terapia antirretroviral sem o risco de rebote viral. Não seria exatamente uma cura clássica, porque o vírus ainda estaria no corpo, mas sim uma cura funcional, capaz de oferecer liberdade em relação aos medicamentos diários.


Como os cientistas testaram o AST


O trabalho foi meticuloso. Primeiro, os pesquisadores mapearam as regiões do AST que interagem com o DNA do HIV e com proteínas humanas que ajudam a silenciar genes. Identificaram dois trechos fundamentais:


  • um que se liga diretamente ao DNA do vírus, funcionando como âncora,

  • outro que recruta um complexo chamado PRC2, responsável por adicionar “marcas” químicas que fecham a estrutura da cromatina.


Depois, eles criaram versões mutantes do AST, alterando pedaços específicos para ver o que acontecia. Quando esses trechos críticos eram removidos ou modificados, o AST perdia a capacidade de manter o vírus em silêncio.


O passo mais impressionante foi o experimento com células CD4 retiradas de pessoas vivendo com HIV sob tratamento. Nessas células, os cientistas introduziram o AST e depois tentaram reativar o vírus com estímulos fortes, como medicamentos ou ativação do receptor das células T. O resultado foi claro: nas células que receberam AST, o vírus não voltou a se expressar.


É como se o HIV tivesse sido colocado em um sono profundo, do qual não conseguia despertar.


O que isso significa para nós, pessoas vivendo com HIV?


Primeiro, é importante dizer: ainda estamos longe de aplicar esse conhecimento como tratamento disponível. O que foi feito até agora são experimentos em laboratório e “ex vivo”, ou seja, em células de pessoas vivendo com HIV, mas fora do corpo.


Mesmo assim, o avanço é enorme. Pela primeira vez, temos uma prova sólida de que o AST pode ser usado como ferramenta para reforçar a latência do HIV. Isso abre caminho para o desenvolvimento de terapias que utilizem vetores virais (como os já usados em terapia gênica) para introduzir o AST nas células.


Na prática, se essa estratégia for bem-sucedida em estudos futuros, poderemos sonhar com um tratamento que dispense o uso diário de antirretrovirais. Imagine o impacto disso: menos efeitos colaterais, menos dependência de remédios, menos desigualdade no acesso ao tratamento.


Além disso, existe uma dimensão simbólica. Durante muito tempo, falar em cura parecia tabu, quase uma promessa impossível. Hoje, podemos discutir com base em dados concretos uma alternativa que se aproxima dessa ideia. Isso traz esperança, mas também responsabilidade.


Desafios pela frente


Nem tudo são flores. A ciência avança com cautela, e há vários obstáculos antes que o AST possa se tornar uma terapia real:


  1. Segurança – Precisamos garantir que a introdução do AST não cause efeitos colaterais graves, como silenciar genes importantes do nosso corpo.

  2. Entrega eficiente – Levar o AST para dentro das células corretas (os linfócitos CD4 infectados) é um desafio tecnológico.

  3. Variabilidade do HIV – O vírus é altamente diverso entre pessoas e dentro de uma mesma pessoa. Será que o AST funcionará de forma universal?

  4. Escalabilidade – Mesmo que funcione, será preciso pensar em como transformar isso em tratamento acessível, especialmente em países de baixa e média renda, onde está a maioria das pessoas vivendo com HIV.


Mas esses desafios não diminuem a importância da descoberta. Pelo contrário, servem como bússola para orientar os próximos passos da pesquisa.


Entre ciência e vida: o olhar de quem vive com HIV


Como alguém que vive com o vírus desde 2001, me emociono ao ler artigos como esse. Porque eles mostram que não estamos condenados a repetir para sempre a mesma história.


Claro que ainda precisamos do tratamento atual, que já é uma conquista imensa. Mas também precisamos de esperança. E a esperança nasce quando vemos cientistas dedicando anos de suas vidas para encontrar caminhos inovadores.


Ao mesmo tempo, não podemos perder de vista que ciência sozinha não resolve tudo. Uma possível cura funcional só terá sentido se vier acompanhada de políticas públicas que garantam acesso universal, de estratégias de comunicação que reduzam o estigma e de redes comunitárias que apoiem as pessoas vivendo com HIV.


No Instituto Multiverso e no Super Indetectável , temos trabalhado justamente para construir essas pontes entre conhecimento científico, políticas e vida real. Porque não adianta descobrir a chave se as pessoas continuam presas em cadeias de preconceito, exclusão e desinformação.


O futuro já começou


O estudo sobre o AST é mais uma peça no quebra-cabeça da cura do HIV. Outras estratégias estão sendo exploradas, como edição genética com CRISPR, anticorpos de longa duração, transplantes de células resistentes e vacinas terapêuticas.


Talvez a solução definitiva não venha de uma única tecnologia, mas da combinação de várias. O AST, nesse cenário, pode ser um aliado poderoso, ajudando a manter o vírus trancado enquanto outras abordagens reforçam as defesas do corpo.


O mais importante é que o futuro já começou a ser desenhado. Cada novo artigo científico, cada ensaio clínico, cada resultado positivo nos aproxima de um mundo onde viver com HIV não será mais sinônimo de carregar um fardo.


Quando recebi meu diagnóstico, em 2008, parecia impensável imaginar que um dia estaríamos discutindo seriamente a possibilidade de uma cura funcional (nem medicamento eu podia tomar antes de adoecer de aids). Hoje, essa possibilidade de cura está no horizonte.


O estudo sobre o AST mostra que o próprio HIV carrega dentro de si uma ferramenta capaz de mantê-lo em silêncio. É quase poético: o vírus que trouxe tanto sofrimento pode, paradoxalmente, oferecer a chave para nossa libertação.


Como ativista, estudioso, educador e alguém que vive essa realidade na pele, acredito que precisamos celebrar essas descobertas, mas também continuar exigindo que elas se traduzam em políticas públicas e acesso equitativo. Ciência sem justiça social não faz sentido.


Que o AST seja mais do que uma sigla em um artigo científico. Que ele seja o símbolo de um futuro onde possamos viver livres do medo da aids. Não apenas porque temos remédios, mas porque temos dignidade, esperança e direitos garantidos.


A fonte é do estudo "Suppression of HIV-1 transcription and latency reversal via ectopic expression of the viral antisense transcript AST", publicado em 9 de maio de 2025 pela Science Journals do National Institutes of Health (NIH).

 
 
 

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