top of page

Bolsonaro condenado: a queda de um projeto de ódio e a afirmação da democracia

Atualizado: 20 de set.


ree

Bolsonaro condenado - a queda de um projeto de ódio e a afirmação da democracia

Por João Geraldo Netto: O Brasil viveu nesta quinta-feira, 11 de setembro de 2025, um dos capítulos mais importantes de sua história democrática. O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, condenou o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão por tentativa de golpe de Estado e outros quatro crimes. Pela primeira vez desde a redemocratização, um ex-chefe de Estado brasileiro é responsabilizado criminalmente por tentar abolir o Estado Democrático de Direito.


A condenação se refere a uma trama articulada mesmo antes da sua derrota nas eleições de 2022, quando buscou permanecer no poder à revelia das urnas, estimulando atos violentos, desacreditando o sistema eleitoral e insuflando uma base radicalizada contra as instituições. A pena, que inclui crimes de organização criminosa armada, dano ao patrimônio público e deterioração de patrimônio tombado, obriga o início do cumprimento em regime fechado.


A decisão é histórica porque não trata apenas de punir um indivíduo. Trata-se da reafirmação de que, no Brasil, a Constituição não pode ser rasgada ao sabor das ambições pessoais. É também a oportunidade de refletir sobre o legado de quatro anos de governo marcado não apenas por ataques institucionais, mas também por declarações preconceituosas, políticas regressivas e pelo desmonte de conquistas fundamentais no campo da saúde pública.


O preconceito como projeto


Desde os tempos de deputado federal, Bolsonaro construiu sua carreira sobre discursos de ódio. Suas declarações atravessaram décadas como símbolos de intolerância. Em 2010, no programa CQC, afirmou que pessoas vivendo com HIV não poderiam “ficar na vida mundana e depois querer cobrar do poder público” tratamento. Em outras ocasiões, reforçou a ideia de que a epidemia era resultado de “escolhas pessoais”, ignorando que se trata de um fenômeno epidemiológico e social complexo.


Em 2020, já como presidente, voltou a atacar: declarou que pessoas soropositivas eram uma “despesa para todos no Brasil”. A fala não apenas reduzia vidas a números, mas reforçava estigmas historicamente associados à aids — de que se trata de um peso social e não de uma condição de saúde que merece cuidado integral.


O ápice da irresponsabilidade veio em 2021, quando afirmou em uma live oficial que vacinas contra a Covid-19 poderiam “desenvolver Aids” em pessoas vacinadas. A fake news, desmentida pela Anvisa, pela Organização Mundial da Saúde e por cientistas em todo o mundo, provocou pânico, alimentou teorias conspiratórias e revelou o quanto Bolsonaro estava disposto a instrumentalizar o preconceito para sustentar sua narrativa política.


Esses episódios não foram isolados. Eles compõem um projeto de poder sustentado no estigma, no medo e na desinformação. Ao desumanizar pessoas vivendo com HIV, o então presidente dialogava com setores conservadores que veem doenças como castigo moral.


O desmonte da política de HIV/aids


O Brasil foi pioneiro no enfrentamento à epidemia de HIV/aids. Desde os anos 1980, campanhas de prevenção e a distribuição gratuita de antirretrovirais pelo SUS se tornaram referência mundial. A política brasileira foi celebrada pela ONU, citada como exemplo em conferências globais e responsável por salvar milhares de vidas.


Esse protagonismo, no entanto, sofreu golpes duros durante o governo Bolsonaro. Em 2019, por meio do Decreto nº 9.795, o Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais foi rebaixado a uma subseção dentro de uma secretaria mais ampla. Especialistas denunciaram o ato como tentativa de esvaziar a política nacional de aids. Aliás, foi em agosto deste ano que eu fui demitido do Ministério da Saúde, depois que a equipe do presidente descobriu, através de um deslise, que eu era um “subversivo”. Fui sumariamente descartado após quase nove anos de dedicação ao Ministério.


Campanhas de prevenção foram cortadas ou alteradas para excluir menções à população LGBTI+. A participação de organizações da sociedade civil (fundamentais para o sucesso da resposta brasileira) foi reduzida. Protocolos foram alterados sem diálogo com profissionais de saúde e movimentos sociais.


O resultado foi imediato: retrocessos nos indicadores de prevenção, aumento da invisibilidade de populações vulneráveis e enfraquecimento da resposta nacional. A negligência estatal deixou um vácuo perigoso que aumentou o risco de novas infecções, justamente num momento em que novas estratégias de prevenção, como a PrEP (profilaxia pré-exposição), precisavam ser ampliadas.


Um histórico de ataques a grupos vulneráveis


A forma como Bolsonaro tratou a pandemia de HIV não foi exceção, mas parte de um padrão mais amplo de hostilidade a grupos historicamente marginalizados.


Contra a população LGBTI+, colecionou frases homofóbicas e vetou campanhas educativas voltadas a jovens gays, lésbicas e trans. Ao longo de seu governo, editais culturais foram suspensos quando envolviam diversidade sexual e de gênero.


Contra a população negra, declarou em palestra que quilombolas “não serviam nem para procriar” e atacou políticas de cotas raciais, classificando-as como “coitadismo”.


Contra mulheres, banalizou o assédio e disse que não estupraria uma deputada porque “ela não merecia”.

Contra povos indígenas, desdenhou de territórios demarcados e incentivou a mineração ilegal, afetando comunidades inteiras com violência, doenças e contaminação por mercúrio.


Contra os pobres, defendeu armar “cidadãos de bem” enquanto reduzia programas sociais, insistindo que fome era “narrativa”.


Esse conjunto de declarações e práticas revela que o projeto bolsonarista sempre foi excludente: governar apenas para quem cabia em seu molde de “família tradicional”, relegando o restante da população ao descaso ou à hostilidade aberta.


Negacionismo e mortes evitáveis na pandemia


Se o desmonte da política de HIV representou um retrocesso grave, a condução da pandemia de covid-19 expôs de forma brutal o custo humano do negacionismo.


Desde os primeiros casos, Bolsonaro minimizou a gravidade da doença, chamando-a de “gripezinha” e “resfriadinho”. Desestimulou o uso de máscaras, questionou medidas de isolamento e defendeu o uso de medicamentos sem eficácia, como a cloroquina.


Enquanto países corriam para garantir vacinas, o governo brasileiro atrasou negociações com laboratórios, recusando ofertas que poderiam ter adiantado a imunização em meses. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid apontou que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o Brasil tivesse adotado medidas básicas de prevenção e vacinação.


A live em que Bolsonaro associou vacinas ao desenvolvimento de aids foi um retrato cruel desse período. Além de espalhar desinformação, atacou diretamente a confiança da população em um dos instrumentos mais importantes da saúde pública: a imunização.


O golpe frustrado e a democracia ameaçada


Ao perder as eleições em 2022, Bolsonaro não se contentou em entregar a faixa presidencial. Insuflou sua base a questionar o sistema eleitoral, estimulou acampamentos em frente a quartéis e alimentou a fantasia de uma intervenção militar. É bom lembrar que mesmo após sua vitória, em 2018, Bolsonaro tentou descredibilizar o sistema eleitoral do Brasil. Era o início de um plano complexo. 


A culminância foi em 8 de janeiro de 2023, quando milhares de apoiadores invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. Embora já estivesse nos Estados Unidos, a investigação demonstrou que Bolsonaro foi o mentor intelectual e articulador do movimento golpista.


O STF, ao condená-lo, reafirma que a democracia não é negociável. O Estado de direito não pode ser dobrado à vontade de quem perdeu nas urnas.


A importância da memória e da justiça


A condenação de Bolsonaro não apaga as marcas deixadas em quatro anos de (des)governo, mas abre caminho para a reconstrução. É um convite à memória. Lembrar as vidas perdidas na pandemia, os retrocessos nas políticas de HIV, as comunidades negras, indígenas e periféricas atingidas pela violência e pelo descaso.


É também um lembrete de que a democracia é condição para a garantia de direitos básicos. Sem Estado de direito, não há SUS, não há políticas de prevenção nem de redução de danos, não há campanhas educativas. O ataque à Constituição é também um ataque ao direito à saúde, porque sem democracia não há quem assegure políticas públicas universais.


Um futuro em disputa


Com a condenação, o Brasil dá um passo fundamental para afirmar que ninguém está acima da lei. Mas o futuro segue em disputa. As mesmas forças que sustentaram o bolsonarismo continuam vivas em setores poderosos da sociedade, na política e nas redes sociais.


Reconstruir o país exigirá mais do que punir um ex-presidente. Será necessário retomar campanhas de prevenção ao HIV, ampliar a distribuição de PrEP e PEP, garantir acesso universal a medicamentos, investir em saúde mental, enfrentar o racismo estrutural e proteger populações indígenas e periféricas.


Será preciso também enfrentar a desinformação, o veneno que Bolsonaro usou para corroer a confiança nas instituições e nas políticas públicas. Combater fake news é hoje uma tarefa tão essencial quanto garantir leitos hospitalares.


A democracia como garantia de saúde


A sentença contra Bolsonaro também é histórica porque nos lembra que saúde e democracia caminham juntas. O direito à saúde, inscrito na Constituição, só existe porque vivemos sob um regime democrático. Quando um governante tenta abolir esse regime, atenta contra todos os direitos: o de votar, o de se expressar, o de viver com dignidade e o de receber tratamento médico.


Punir crimes contra a Constituição não é apenas punir um político. É proteger a sociedade inteira. É afirmar que os pobres, os negros, os indígenas, os LGBTI+ e as pessoas vivendo com HIV não podem ser tratados como descartáveis. É garantir que a vida de cada cidadão brasileiro importa.


Concluindo…


No dia 11 de setembro de 2025, o Brasil reafirmou sua democracia. Tivemos o privilégio de assistir a história sendo escrita. E ela é implacável. A condenação de Jair Bolsonaro é um divisor de águas: a queda de um projeto que tentou se sustentar no ódio, na mentira e na violência.


É também um aviso para o futuro: quando a Constituição é atacada, não se trata apenas de disputa política. Trata-se da própria sobrevivência de direitos fundamentais, inclusive o direito à saúde, que é a expressão mais concreta da dignidade humana.


O caminho à frente será árduo, mas hoje a democracia venceu. E ao vencer, lembrou que ninguém muda a história sozinho, mas que juntos podemos resistir, reconstruir e afirmar, mais uma vez: saúde, justiça e democracia são indivisíveis.

 
 
 

Comentários


bottom of page