Lista com nomes de pessoas vivendo com HIV é publicada em Feira de Santana e escancara violência institucional
- João Geraldo Netto

- 21 de set.
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Por João Geraldo Netto: No sábado (20), a Prefeitura de Feira de Santana, na Bahia, protagonizou um dos episódios mais graves de violação de direitos humanos já vistos no Brasil recente. Em plena edição do Diário Oficial, foram expostos os nomes de mais de 600 pessoas vivendo com HIV, além de pacientes com fibromialgia e anemia falciforme, ao anunciar a suspensão do benefício do passe livre no transporte coletivo. O documento foi retirado do ar horas depois, mas o estrago já estava feito: a vida de centenas de cidadãos foi marcada por uma exposição cruel e desnecessária.
A Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SEMOB) tentou justificar a publicação como uma “falha do sistema”. Mas quem vive com HIV sabe que não se trata apenas de erro técnico. Trata-se de negligência, de falta de responsabilidade com dados sensíveis e, acima de tudo, de um descaso profundo com a dignidade humana.
A lei é clara: sigilo é um direito
Não há espaço para dúvidas. A Lei nº 14.289/2022 determina que informações sobre HIV, hepatites virais, hanseníase e outras condições são sigilosas por força de lei. Nenhum órgão público ou privado pode divulgar esses dados sem consentimento expresso. Essa legislação surgiu justamente porque ainda vivemos em uma sociedade marcada pelo estigma e pela discriminação, onde uma simples revelação pode custar emprego, família, moradia e até a segurança física de alguém.
A lei vem se somar a outras garantias já previstas: a Constituição Federal, que assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do sigilo de dados; a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que classifica informações de saúde como dados sensíveis; e normas do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Código de Ética Médica, que reforçam a confidencialidade como princípio básico.
Portanto, ao expor centenas de nomes, a Prefeitura não só feriu a dignidade das pessoas, mas rasgou a Constituição, desrespeitou a LGPD e descumpriu uma lei específica que protege justamente esse grupo.
O peso do estigma
Quem vive com HIV no Brasil sabe que o vírus não é mais uma sentença de morte. Com tratamento adequado, é possível ter uma vida longa, ativa e saudável. Pessoas com carga viral indetectável não transmitem o vírus. Um avanço científico celebrado mundialmente.
Mas, fora dos consultórios, ainda enfrentamos uma sentença social: o estigma. Ele se manifesta em demissões silenciosas, em portas fechadas, em olhares atravessados, em exclusão familiar, em agressões verbais e até físicas. Em cidades como Feira de Santana, onde todos se conhecem, a divulgação de uma lista como essa é equivalente a marcar pessoas com um selo de preconceito.
O poder público, que deveria proteger, acaba reforçando o ciclo de discriminação. O medo de novas violações pode afastar pessoas dos serviços de saúde, reduzir a adesão ao tratamento e comprometer o enfrentamento coletivo da epidemia.
Violações que matam
Não é exagero afirmar: violações de sigilo como essa podem matar.
Elas matam quando levam ao abandono do tratamento por medo de exposição.
Elas matam quando fecham portas de trabalho e empurram pessoas para a marginalização.
Elas matam quando alimentam o preconceito que isola, adoece e deprime.
É por isso que a defesa do sigilo sorológico sempre foi bandeira central do movimento de pessoas vivendo com HIV no Brasil. Graças a essa luta, conquistamos leis, políticas públicas e reconhecimento internacional. O episódio de Feira de Santana é um retrocesso inaceitável que não pode ser naturalizado.
Responsabilização já!
Dizer que “foi uma falha do sistema” não basta. O poder público precisa ser responsabilizado. É urgente que o Ministério Público, a Defensoria Pública e órgãos de direitos humanos investiguem o caso, garantam reparação às pessoas atingidas e cobrem mudanças estruturais na forma como dados sensíveis são tratados.
Além disso, é fundamental investir em protocolos de segurança, treinar servidores e criar mecanismos de controle que impeçam que algo tão grave se repita. Quem lida com informações de saúde precisa compreender que cada dado é uma vida, e cada vida merece respeito.
Não ao silêncio
Esse caso precisa ecoar. Precisamos falar sobre ele nas redes, nas rodas de conversa, nos espaços de militância, nos serviços de saúde. Porque se o silêncio vence, o estigma vence. E quando o estigma vence, todos perdemos.
Feira de Santana expôs mais de 600 pessoas. Mas, simbolicamente, expôs toda uma comunidade que, há mais de 40 anos, luta contra o preconceito, pela vida e pelo direito de existir com dignidade. A luta continua, e o recado precisa ser claro: nosso sigilo não é favor, é lei. Nosso direito à privacidade não é concessão, é conquista. E nenhuma prefeitura, por falha ou descaso, vai nos tirar isso.


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