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PrEP, liberdade sexual e saúde pública: contestando mitos e defendendo evidências científicas

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PrEP, liberdade sexual e saúde pública

Por João Geraldo Netto: A discussão em torno da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV voltou a ganhar espaço no debate público após declarações da vereadora de São Paulo, Janaina Paschoal (Progressistas). Em suas redes sociais, no dia 26 de agosto, a parlamentar questionou o uso do medicamento e associou sua distribuição gratuita ao aumento de casos de sífilis. Segundo ela, a PrEP teria incentivado o "abandono do preservativo" e promovido o que chamou de "sexo irresponsável".


A fala, no entanto, ignora evidências científicas acumuladas ao longo de mais de uma década de pesquisas no Brasil e no mundo, além de desconsiderar a importância de políticas de saúde que ampliam o acesso à prevenção combinada, uma estratégia reconhecida internacionalmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids).


Mais do que uma crítica pontual, o episódio expõe a permanência de discursos moralistas sobre sexualidade, que historicamente se voltam contra pessoas fora da heteronormatividade, como os gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, trabalhadores(as) do sexo e outros grupos historicamente estigmatizados. Ao associar a prevenção biomédica ao descontrole sexual e à propagação de infecções, tais falas não apenas distorcem dados científicos, mas também reforçam mecanismos de controle dos corpos e da liberdade sexual.


O que é a PrEP e como funciona


A PrEP consiste no uso diário de medicamentos antirretrovirais por pessoas HIV negativas, mas que estão em maior risco de exposição ao vírus. Quando tomada corretamente, a estratégia pode reduzir em mais de 99% a chance de infecção via sexual, segundo dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), nos Estados Unidos.


No Brasil, a PrEP foi incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 2017 e, desde então, tornou-se uma das ferramentas mais eficazes na redução de novas infecções pelo HIV. Ela não substitui outros métodos, como a camisinha, mas se soma a eles dentro de uma abordagem de prevenção combinada, que inclui também testagem regular, uso da Profilaxia Pós-Exposição (PEP), tratamento como prevenção (pessoas vivendo com HIV em tratamento e indetectáveis não transmitem o vírus), além de campanhas educativas.


São Paulo: redução consistente de novos casos de HIV


Contrariando a fala da vereadora, os números da própria Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo reforçam a importância da PrEP. Nos últimos oito anos, a cidade registrou queda consecutiva nos novos diagnósticos de HIV, acumulando uma redução de aproximadamente 55% desde 2016. Entre jovens, o percentual é ainda maior: 59%.


Atualmente, a capital paulista contabiliza mais de 70 mil cadastros ativos de usuários de PrEP. Apenas no serviço municipal SPrEP, voltado à testagem e prevenção, mais de 11 mil atendimentos envolvendo PrEP e PEP foram realizados entre junho de 2023 e julho de 2025. Além disso, a cidade distribuiu 82 milhões de preservativos no mesmo período, evidenciando que a ampliação da PrEP não significa abandono das camisinhas, mas, sim, fortalecimento do acesso múltiplo a diferentes métodos de prevenção.


Sífilis: um desafio global que não pode ser simplificado


A sífilis é uma infecção sexualmente transmissível que voltou a crescer no Brasil e no mundo nas últimas décadas, mas sua dinâmica epidemiológica é complexa e não pode ser atribuída a um único fator, como sugere a vereadora.


Segundo boletim do Ministério da Saúde de 2024, entre 2010 e 2024 foram registrados 1.538.525 casos de sífilis adquirida no país. As taxas variaram de 59,7 casos por 100 mil habitantes em 2020 para 113,8 em 2023 – a maior já registrada. Esse aumento, no entanto, acompanha uma tendência internacional e está relacionado a múltiplas questões: maior acesso à testagem, falhas no abastecimento de penicilina em determinados períodos, aumento da resistência bacteriana e desafios estruturais do sistema de saúde.


Em São Paulo, os indicadores mostram o contrário do que afirma a parlamentar: a capital tem uma das menores taxas de sífilis congênita entre as capitais brasileiras, justamente por investir em prevenção, testagem e tratamento. Portanto, não há evidências científicas que sustentem a associação direta entre uso da PrEP e crescimento da sífilis.


Evidências internacionais e o mau uso de estudos


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Janaina Paschoal citou um estudo de 2019 da Universidade Monash, na Austrália, para embasar suas críticas. O problema é que interpretações simplistas desconsideram a natureza desses achados. É fato que alguns estudos observam maior incidência de outras ISTs entre pessoas que utilizam PrEP. Contudo, especialistas destacam que esses usuários estão frequentemente sob acompanhamento médico, realizam testagens regulares e, portanto, têm maior chance de diagnóstico precoce.


Ou seja, não se trata de um aumento causado pela PrEP, mas de uma maior detecção de casos que, de outra forma, poderiam permanecer invisíveis. Além disso, atribuir responsabilidade ao medicamento pela decisão de usar ou não preservativo é um raciocínio que transfere a discussão da esfera da autonomia sexual para o campo do moralismo.


Controle da sexualidade e estigmas


A fala da vereadora ecoa discursos antigos que condenavam, por exemplo, o acesso de mulheres à pílula anticoncepcional nas décadas de 1960 e 1970, sob a justificativa de que elas promoveriam "promiscuidade". Hoje, a crítica recai sobre gays e outras populações vulnerabilizadas que, com a PrEP, conquistaram uma nova camada de proteção contra o HIV.


Esse tipo de argumento reforça a ideia de que certas pessoas não devem exercer sua liberdade sexual plenamente, como se sua saúde estivesse condicionada a padrões morais heteronormativos. Na prática, restringir o acesso à PrEP ou deslegitimar seu uso significa impor barreiras adicionais a grupos já historicamente marginalizados e mais afetados pela epidemia de HIV.


A prevenção como direito à saúde


A Constituição Federal de 1988 estabelece a saúde como um direito de todos e dever do Estado. Nesse sentido, a oferta da PrEP pelo SUS não é "um gasto para incentivar sexo irresponsável", mas uma política pública baseada em evidências, que salva vidas, reduz custos futuros com tratamento de HIV e promove dignidade e autonomia.


Um estudo publicado na revista The Lancet HIV em 2022 mostrou que a ampliação do acesso à PrEP tem impacto direto na redução da incidência do HIV em diferentes contextos, inclusive em países da América Latina. No Brasil, dados preliminares de 2023 do Ministério da Saúde indicam que estados que mais expandiram a estratégia foram também os que registraram queda mais acentuada nas novas infecções.


Além disso, a lógica do "sexo responsável" defendida pela vereadora carrega em si uma visão moralizante, que ignora a diversidade de práticas sexuais e as dificuldades reais que muitas pessoas enfrentam para negociar o uso de preservativos, especialmente em contextos de violência, desigualdade de gênero ou discriminação. A PrEP, nesse cenário, representa uma alternativa poderosa de autonomia.


Ciência, não moralismo


As declarações de Janaina Paschoal sobre a PrEP e a sífilis se inserem em uma narrativa que mais confunde do que esclarece. Ao atacar uma política pública que vem se mostrando eficaz, a parlamentar não apenas desinforma a população, mas também coloca em risco avanços conquistados com décadas de luta contra a epidemia de HIV/aids no Brasil.


Os dados são claros: a PrEP reduz drasticamente as chances de infecção pelo HIV, está associada a quedas significativas de novos casos e não pode ser responsabilizada pelo aumento de outras ISTs, cuja dinâmica é multifatorial. Mais do que nunca, é preciso reforçar que saúde pública deve se guiar pela ciência, e não por moralismos ou preconceitos.


O acesso à PrEP é um direito, e sua existência simboliza também a luta pela liberdade sexual e pelo reconhecimento da diversidade humana. Reforçar discursos contrários a essa política significa, em última instância, tentar controlar corpos e sexualidades que escapam às normas heteronormativas. A ciência, felizmente, já demonstrou que ampliar a prevenção é o caminho para salvar vidas, e não para restringi-las.

 
 
 

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