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Unaids sob ameaça. O possível fim de uma agência vital para a resposta global ao HIV

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Unaids sob ameaça

Por João Geraldo Netto: O mundo está diante de um cenário que parecia impensável há poucos anos: a possível extinção do Unaids, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids, até o final de 2026. Criada em 1996 para coordenar a resposta global à pandemia, a agência tornou-se um dos principais símbolos de cooperação internacional em saúde pública, responsável por mobilizar governos, sociedade civil e cientistas em torno do objetivo de acabar com a epidemia de aids como ameaça à saúde pública até 2030.


Mas esse futuro está em risco. Documentos internos da ONU, divulgados em setembro de 2025, revelam que a agência pode ser “descontinuada” como parte de um processo de reestruturação impulsionado por uma crise de financiamento sem precedentes. A razão central? Os cortes abruptos na ajuda externa dos Estados Unidos sob a liderança do presidente Donald Trump.


A história de uma conquista ameaçada


Para compreender a gravidade desse anúncio, é preciso lembrar o que está em jogo. Desde que os primeiros casos de HIV foram relatados, no início dos anos 1980, cerca de 88 milhões de pessoas foram infectadas e 42 milhões morreram de doenças relacionadas à aids, segundo dados do próprio Unaids.


Graças à ação coordenada de governos, organizações da sociedade civil e agências internacionais, milhões de vidas foram salvas. Novos medicamentos, acesso ampliado a testes, terapias de prevenção como a PrEP (profilaxia pré-exposição) e campanhas globais de conscientização permitiram uma queda histórica no número de mortes. Entre 2010 e 2023, as mortes relacionadas à aids caíram de 1,3 milhão para 630 mil por ano — uma redução de mais de 50%.


No entanto, a batalha está longe de vencida. Quase um quarto das pessoas que vivem com HIV ainda não têm acesso ao tratamento antirretroviral, e novas infecções estão em crescimento em diversas regiões, especialmente entre populações vulneráveis.


O Unaids sempre foi a bússola dessa resposta global, articulando políticas, recursos e conhecimento científico. Sua possível extinção é, portanto, um terremoto para milhões de pessoas que dependem da continuidade das ações de prevenção, diagnóstico e tratamento.


O anúncio do “pôr do sol”


Em setembro de 2025, um documento publicado pela ONU anunciou que o Unaids passará por um processo de “sunset”, ou extinção gradual, até o final de 2026. Sua expertise seria transferida a outros organismos da ONU em 2027, mas com forte redução de orçamento e equipe.


O texto apresenta a decisão como parte de um esforço de “simplificação” administrativa, mas o pano de fundo é a crise provocada pelos cortes massivos da ajuda internacional dos Estados Unidos, que sempre foram o principal financiador da luta contra o HIV.


O papel central dos Estados Unidos


Desde 2003, com a criação do PEPFAR (Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da Aids), os EUA lideraram a resposta global ao HIV. Foram mais de 26 milhões de vidas salvas e quase 5 milhões de infecções evitadas em 55 países. Em dezembro de 2024, o governo norte-americano apoiava diretamente o tratamento de mais de 20 milhões de pessoas, incluindo 560 mil crianças.


Essa liderança foi revertida em janeiro de 2025, quando Trump voltou à Casa Branca e anunciou um congelamento de 90 dias em toda a assistência externa. A decisão atingiu em cheio o PEPFAR, o Fundo Global e o próprio Unaids.


A suspensão interrompeu a entrega de medicamentos e serviços de prevenção. Após pressão internacional, foi emitida uma exceção humanitária, permitindo apenas a continuidade de tratamentos básicos e da prevenção da transmissão vertical (de mãe para filho). A maioria dos programas comunitários permaneceu paralisada.


Em fevereiro, o governo rescindiu o acordo de cooperação com o Unaids e anunciou a dissolução da USAID, agência responsável por grande parte das ações de saúde global. O resultado foi o colapso de estruturas que sustentavam a resposta internacional ao HIV.


O efeito dominó


O Unaids já tinha um plano de transição em andamento, que previa redução de 55% do quadro de funcionários e uma revisão em 2027. O novo cronograma acelera esse desmonte, deixando em risco décadas de conquistas.


As projeções são alarmantes. Se os programas apoiados pelos EUA forem interrompidos, entre 2025 e 2029 o mundo poderá enfrentar:


  • 6,6 milhões de novas infecções pelo HIV, ou 2.300 por dia;

  • 4,2 milhões de mortes relacionadas à aids adicionais, chegando a 2.400 óbitos diários em 2025;

  • 660 mil novas infecções em crianças e mais de 300 mil mortes infantis;

  • 3 milhões de novas crianças órfãs devido à aids.


Esses números não representam apenas estatísticas: significam destinos humanos interrompidos e comunidades devastadas.


A aids não acabou


Apesar dos avanços, a epidemia continua. Em muitas regiões, especialmente na África Subsaariana, o tratamento só é possível graças ao financiamento externo. Na Ásia e América Latina, programas apoiados pelo Unaids e pelo PEPFAR são cruciais para alcançar populações marginalizadas, como homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, usuários de drogas e trabalhadoras do sexo.


O desmonte do Unaids e do PEPFAR ameaça desfazer em poucos anos conquistas que levaram décadas.


Trump e a política da destruição


O papel de Donald Trump é central nessa crise. Em seu primeiro mandato, ele já havia imposto restrições ideológicas à ajuda externa, como a “global gag rule”, que cortava recursos de organizações envolvidas em saúde sexual e reprodutiva.


Em seu retorno, ampliou a ofensiva. Ao colocar a ajuda internacional sob suspeita e priorizar uma agenda de retração, transformou milhões de vidas em reféns de disputas políticas domésticas.


Além de destruir programas vitais, essa estratégia compromete a liderança internacional dos EUA, construída ao longo de décadas. O vácuo deixado dificilmente será preenchido por outros países.


O que está em risco


O fim do Unaids significaria perder uma instância única de articulação global. Diferente de outras agências, o programa integra a ONU, a sociedade civil e grupos afetados, garantindo respostas técnicas, políticas e comunitárias.


Essa estrutura foi essencial para enfrentar estigmas, dar visibilidade a populações vulneráveis e vincular o combate ao HIV à luta por direitos humanos. Incorporar suas funções a outros organismos da ONU pode preservar aspectos técnicos, mas dificilmente manterá essa dimensão política e mobilizadora.


Mobilização internacional


Após a divulgação do documento, organizações da sociedade civil e redes de pessoas vivendo com HIV intensificaram pressões para que os Estados membros da ONU rejeitem a proposta de extinção e busquem alternativas de financiamento. No Brasil, ainda não se vê movimento contra as medidas que podem extinguir o Unaids.


O desafio, no entanto, é gigantesco. A dependência dos recursos norte-americanos sempre foi um ponto de fragilidade, agora exposta de forma brutal.


Um futuro incerto


O fechamento do Unaids representaria um dos maiores retrocessos da saúde global em décadas. Mais do que uma decisão administrativa, teria consequências concretas: milhões de novas infecções, milhões de mortes adicionais e o fim de um projeto coletivo de enfrentamento a uma das maiores epidemias da história.


A meta de acabar com a aids até 2030 está em xeque. O desaparecimento do Unaids significaria não apenas a perda de uma agência, mas de um símbolo de solidariedade internacional.


No centro dessa crise está a política de destruição promovida pelos Estados Unidos sob Donald Trump. Ao cortar recursos vitais, ele mina a credibilidade do país no cenário global e compromete o futuro de milhões que dependem desses programas para sobreviver.


A aids não acabou, e a luta por justiça, saúde e dignidade também não pode acabar. O futuro do Unaids é, acima de tudo, o futuro de milhões de vidas.


 
 
 

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