A Festa Acabou. Ressaca emocional e síndrome do domingo
- João Geraldo Netto

- há 24 horas
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Atualizado: há 19 horas
TÍTULO
A Festa Acabou. Ressaca emocional e síndrome do domingo.
CONVIDADO
Helio Neiva: Psicólogo e psicanalista de Goiânia, traz ao seminário uma escuta refinada sobre as relações entre sofrimento psíquico, uso de substâncias e sexualidade. Com trajetória clínica marcada pelo cuidado a pessoas vivendo com HIV e por experiências com dependências químicas, ele contribui para ampliar o olhar sobre o chemsex fora do eixo Rio–São Paulo, destacando desigualdades regionais e novas formas de uso que emergem no país.
Marcos Souza: Psicólogo, psicodramatista e especialista em diversidade sexual e de gênero, com atuação clínica voltada ao cuidado afirmativo de pessoas LGBTQIAPN+. Sua experiência com saúde mental, relações, processos identitários e práticas de acolhimento comunitário amplia o olhar do Seminário, contribuindo com uma perspectiva sensível e fundamentada sobre cuidado, vínculos e construção de estratégias de redução de danos no contexto do chemsex.
MODERADORES
Pedro HMC e João Geraldo Netto
DETALHES
Panorama da Mesa 8 do 2º Seminário Brasileiro de Redução de Danos no Uso Sexualizado de Substâncias (Chemsex), realizada em dezembro de 2025, em São Paulo. O tema central é "A Festa Acabou. Ressaca emocional e síndrome do domingo", focando nas estratégias de acolhimento e suporte psicológico para quem pratica chemsex. O objetivo do debate, com a participação dos psicólogos Helio Neiva (psicanalista de Goiânia) e Marcos Souza (psicodramatista), é abordar os efeitos emocionais pós-uso, o vazio existencial, e o impacto da "guerra às drogas" na saúde mental, buscando formas de suporte individual e coletivo. A discussão explora a culpa pós-uso, a fragilidade dos vínculos formados durante o uso e a necessidade de redes de apoio eficazes, especialmente em contextos mais conservadores.
A música para, as luzes se acendem e a euforia da festa dá lugar ao silêncio ensurdecedor da manhã seguinte. Para muitos, a "síndrome do domingo" ou a ressaca emocional que se instala após um período de intensa socialização e prazer é uma experiência solitária e desconcertante. É um sentimento de vazio que ecoa mais alto que a música da noite anterior, deixando uma pergunta no ar: por que o pós-festa dói tanto?
Essa questão foi o ponto central do debate "A Festa Acabou. Ressaca emocional e síndrome do domingo", realizado durante o 2º Seminário Brasileiro de Redução de Danos no Uso Sexualizado de Substâncias (Chemsex). Nele, o psicólogo e psicanalista Hélio Neiva e o psicólogo e psicodramatista Marcos Souza mergulharam nas complexidades desse "dia seguinte". Este artigo destila os principais insights da conversa deles, oferecendo um guia para navegar e compreender melhor a ressaca que não é apenas física, mas profundamente emocional.
Os 5 Principais Insights Sobre a Ressaca Emocional
Aqui estão cinco reflexões essenciais que surgiram no debate para ajudar a entender e lidar com o vazio pós-uso.
O "Vazio" do Domingo é Mais do que Apenas Química
De acordo com Hélio Neiva, reduzir a ressaca emocional a uma simples queda nos níveis de dopamina é perder o ponto principal. A partir de uma perspectiva psicanalítica, esse momento de silêncio força um confronto direto com a "falta" ou o "vazio existencial" que as substâncias e a intensidade da festa tentavam mascarar. O consumo intenso, muitas vezes, funciona como uma tentativa de evitar a frustração e a falha, criando uma ilusão temporária de plenitude. Hélio ressalta que essa "síndrome do domingo" é uma metáfora que está se expandindo: "...pensando no domingo, também pode ser segunda, quarta... Cada vez mais o consumo aumenta para evitar a metáfora do domingo".
Quando a festa acaba, essa ilusão se desfaz, e a realidade da nossa incompletude volta com força total.
"essa não lidar com a falta é uma ilusão de que se tem a vida inteira naquele dia e como evitando aquele dia acabar" - Hélio Neiva
O Choque de Deixar de Ser o "Super-Herói" da Festa
Marcos Souza, utilizando a ótica do psicodrama, explica que durante o uso de substâncias, as pessoas frequentemente assumem papéis idealizados: "o potente", "o incansável", "o desinibido". É uma performance de um "eu" que gostaríamos de ser, livre das amarras do cotidiano. A síndrome do domingo, então, é o choque de "voltar para o eu real" — um eu que é percebido como incompleto, cheio de inseguranças e vulnerabilidades.
A reflexão principal proposta por Marcos é que o verdadeiro desafio não é apenas performar essa potência, mas encontrar maneiras de transformá-la e trazê-la para a vida cotidiana. Sem essa integração, a vida corre o risco de se tornar um ciclo de extremos, onde "domingo é o dia que a gente cai, segunda, terça e quarta são os dias que a gente está lá embaixo, no fundo do poço, tentando só de fato sobreviver. Quinta-feira a gente volta a ter um lampejo de vida... e sexta a gente volta a usar."
Essa Culpa Não é Só Sua. É um Eco da Sociedade
Essa necessidade de performar um eu idealizado não surge do nada; ela é uma resposta direta às pressões e julgamentos que a sociedade impõe. A culpa e a autodepreciação são sentimentos comuns no pós-festa. No entanto, Hélio Neiva argumenta que culpar apenas o indivíduo é uma armadilha individualista e problemática. Essa culpa, na verdade, responde a um "imperativo capitalista" e social contraditório. Entramos em um "circuito perverso de ser produtivo", onde o ciclo de "produção e compensa, produção compensa" nos leva a buscar o prazer como recompensa, para depois nos julgar por isso.
Para a comunidade LGBTQIAPN+, essa dinâmica é ainda mais cruel. A culpa pode ser amplificada por feridas históricas como a homofobia internalizada e a solidão estrutural. Nesse contexto, a ressaca emocional pode vir acompanhada da sensação de estar confirmando estigmas negativos que a sociedade projeta sobre a comunidade, tornando o peso ainda maior.
Por que é Mais Fácil Festejar Juntos do que Curar Juntos?
Uma das observações mais potentes do debate veio de uma pergunta retórica de Hélio: por que existe uma "turma da balada" mas não uma "turma da ressaca"? A resposta revela a fragilidade dos vínculos criados durante a euforia do chemsex e uma dificuldade cultural mais ampla de nos conectarmos através do sofrimento. É muito mais fácil encontrar companhia na alegria do que na vulnerabilidade.
Essa tendência leva ao isolamento no dia seguinte, com "cada um no seu buraco", lidando com seus demônios sozinho. Hélio observa que, na ausência de redes de apoio laicas e seculares para acolher esse sofrimento, grupos religiosos muitas vezes acabam ocupando esse espaço, oferecendo um tipo de suporte que poderia ser construído dentro da própria comunidade.
Primeiros Socorros Práticos para a "Bad" de Domingo
Para além da compreensão teórica, Marcos Souza ofereceu ações práticas e concretas para "aterrizar" no dia seguinte e iniciar um processo de autocuidado. São gestos simples, mas poderosos:
Sair da cama: É o primeiro e mais importante passo. Ficar deitado em um espaço passivo pode intensificar o ciclo de pensamentos negativos. Levantar-se é um ato de retomada.
Abrir a janela: Um gesto simbólico para se reconectar com a vida lá fora. Sentir o sol ou o ar fresco pode parecer difícil, mas ajuda a lembrar que você está vivo e que o mundo continua.
Cuidar de um pet: As "obrigações positivas" de cuidar de outra vida, como um animal de estimação, podem nos forçar a cuidar melhor de nós mesmos. A necessidade de alimentar ou passear com um pet nos tira do nosso próprio buraco.
Preparar o ambiente antes: Assim como nos preparamos para a festa, devemos nos preparar para o depois. Deixar comida que você goste, água e um ambiente confortável prontos para o pós-festa facilita o processo de recuperação e é um ato de cuidado consigo mesmo.
Enquanto essas estratégias são poderosas para lidar com a tristeza e o cansaço comuns do pós-festa, é vital saber diferenciar esse estado de um quadro que exige atenção profissional. Hélio Neiva aponta que um sinal de alerta principal é um pensamento fixo que "não sai", uma ruminação que não cede. Marcos Souza, por sua vez, estabelece o limite absoluto que exige ajuda imediata: o surgimento de pensamentos suicidas. Esse não é um sentimento a ser ignorado ou minimizado; é um sinal claro de que é preciso buscar apoio.
Transformando a Vulnerabilidade em Conexão
A ressaca emocional é muito mais do que uma reação química; é um fenômeno complexo, social e profundamente humano. Entendê-la não como uma falha moral individual, mas como uma experiência compartilhada, é o primeiro passo para lidar com ela de forma mais compassiva. As reflexões de Hélio Neiva e Marcos Souza nos convidam a olhar para além da culpa e do isolamento, buscando estratégias de cuidado que sejam tanto individuais quanto coletivas.
Isso nos deixa com uma pergunta final: o que aconteceria se começássemos a construir nossas próprias "turmas da ressaca", transformando a vulnerabilidade do dia seguinte em uma nova forma de cuidado e conexão real?




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