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E Se Eu Quiser Parar? Caminhos possíveis depois do chemsex e o que as experiências e evidências dizem.

TÍTULO

E Se Eu Quiser Parar? Caminhos possíveis depois do chemsex e o que as experiências e evidências dizem.


CONVIDADO


  • Victor C. Passarelli: Médico infectologista e pesquisador do HCFMUSP, traz ao Seminário uma visão profunda sobre saúde sexual, IST e práticas emergentes como o chemsex. Sua atuação une clínica, pesquisa e prevenção, fortalecendo diálogos multidisciplinares essenciais para pensar ações concretas de cuidado e redução de danos na comunidade LGBTQIAPN+.


MODERADORES

Thiago Jerohan e Fabi Mesquita


DETALHES

Discussão focada na discussão sobre o chemsex, especificamente no uso de estimulantes como a metanfetamina e o GHB no contexto sexual. O médico infectologista Dr. Victor Passarelli, junto com os apresentadores, discute a redução de danos e a necessidade de abordagens não punitivistas, enfatizando a autonomia do indivíduo no tratamento de uso problemático. O diálogo aborda as diferenças entre a dependência química neurobiológica e os aspectos ritualísticos e sociais do uso de substâncias, bem como a dificuldade de referenciar pessoas que buscam apoio no Sistema Único de Saúde (SUS) sem serem estigmatizadas. Profissionais de saúde e participantes também levantam a importância de um olhar biopsicossocial e de considerar as questões de repressão e moralismo que influenciam o prazer e o uso compulsório.




O que realmente significa "parar" com o chemsex? Se a resposta fosse tão simples quanto largar uma substância, a discussão seria muito mais curta. Mas a verdade é que interromper ou reduzir o uso sexualizado de drogas é um processo que revela camadas inesperadas sobre prazer, solidão, comunidade e autonomia. Não se trata apenas de química, mas de rituais, afetos e da busca por conexão. As lições a seguir, baseadas nos insights do médico infectologista Victor Passarelli, compartilhados durante o 2º Seminário Brasileiro de Redução de Danos no Uso Sexualizado de Substâncias, desafiam nossas noções mais comuns sobre dependência e oferecem uma visão mais humana e complexa sobre o tema.


A Força do Ritual é, Muitas Vezes, Maior que a da Química


Quando se fala em chemsex, a primeira imagem que vem à mente é a da dependência neurobiológica, de um cérebro "sequestrado" por substâncias. Embora o componente químico seja real, a experiência prática mostra que, em muitos casos, o que prende a pessoa é o ritual em torno do uso. Esse ritual envolve muito mais do que a droga: é o ato de se reunir com pessoas, de buscar prazer coletivamente, de criar um espaço para se desinibir e explorar a sexualidade de forma livre.

Essa distinção é crucial. Encarar o uso apenas como "dependência química" reforça o estigma de que todo praticante é um "viciado" que precisa ser "salvo". Na verdade, essa visão ignora as complexas razões que levam alguém a buscar esse ritual. Em um contexto de repressão e homofobia internalizada, muitos usam substâncias para "se desreprimir e para conseguir vivenciar o prazer de forma mais plena e livre". Entender a força do ritual abre portas para um cuidado que não julga, mas que busca compreender o que aquela prática significa para a pessoa.


Impor um Tratamento Não Funciona. Ponto.


A ideia de que uma pessoa pode ser forçada a se "curar" de um uso problemático de substâncias é uma das falácias mais persistentes e danosas. A internação compulsória, além de desrespeitar a autonomia do indivíduo, simplesmente não funciona. O Dr. Passarelli compartilhou um exemplo real e impactante que ilustra essa falha de forma contundente: um paciente que foi internado à força pela família por seis meses. Ao retornar à consulta, o médico perguntou como havia sido a experiência. O paciente voltou da clínica com vários medicamentos psicotrópicos na prescrição, e sua resposta foi um soco no estômago do modelo punitivo:


"Não adiantou nada eu fiquei seis meses lá planejando como quando eu saísse como é que eu ia usar."

Essa frase revela tudo. Quando a vontade de mudar não parte da própria pessoa, qualquer intervenção externa se torna apenas um obstáculo a ser contornado. O tratamento imposto não gera reflexão nem mudança interna; gera apenas ressentimento e estratégias para voltar ao padrão anterior assim que a porta da clínica se abrir. Cuidado não pode ser sinônimo de controle.


A Autonomia é o Verdadeiro Ponto de Virada


Se a coerção representa o fracasso, a autonomia é a chave para qualquer possibilidade de sucesso. Em contraste direto com a história anterior, há o caso de um paciente com um "padrão de uso de craque semanal uma vez por semana só super controlado", que ele manteve por mais de dez anos. Ele vivia sua vida, trabalhava e mantinha suas relações, e o acompanhamento médico era baseado na escuta e na redução de danos, sempre com uma porta aberta para quando ele precisasse de mais ajuda.


Um dia, esse momento chegou. O próprio paciente percebeu que seu padrão de uso havia aumentado e que estava perdendo o controle. Foi ele quem disse: "Acho que eu queria aquela ajuda que você falou". A partir daí, foi encaminhado para um serviço de saúde mental e, por decisão própria, optou por uma internação voluntária para fazer um "detox da vida". O resultado foi positivo, pois a decisão foi dele. O papel do profissional de saúde ou da rede de apoio não é empurrar a pessoa para um tratamento, mas sim caminhar ao lado dela, em um acompanhamento "horizontal", oferecendo suporte até que, se e quando for o momento, o pedido de ajuda possa surgir de forma genuína.


Parar com as Drogas Pode Significar Romper com Seus Amigos


Um dos dilemas mais dolorosos para quem decide reduzir ou parar o uso de substâncias é a dimensão social e afetiva do processo. Como o chemsex acontece em um contexto de socialização (em festas, encontros e na casa de amigos), afastar-se das drogas frequentemente significa ter que se afastar de todo um círculo de amizades e afetos. Não se trata de deixar de ir a "eventos", mas sim de deixar de conviver com as pessoas que você ama.


E como se sai de uma armadilha como essa? Não há respostas fáceis, e cada caminho é dolorosamente pessoal. Um paciente sentiu que a única forma de quebrar o ciclo era se mudando de país, para se distanciar fisicamente da "cena". Outro, para reduzir o uso de metanfetamina, "se afastou de todo mundo", relatando não conseguir mais ter contato com as pessoas com quem convivia. Já um casal, percebendo que o uso estava se tornando abusivo, fez um pacto de redução de danos: continuariam usando em festas, mas nunca mais sozinhos. Essa dimensão afetiva mostra que o processo é infinitamente mais complexo do que a simples força de vontade para "dizer não".


O Grande Desafio: Ressignificar o Prazer e Aceitar a Realidade


Talvez o obstáculo mais sutil e profundo seja o de reaprender a sentir prazer no sexo sem o uso de substâncias. A intensidade de uma experiência sexual com drogas como metanfetamina ou GHB é tão elevada que o sexo "sóbrio" pode parecer frustrante ou sem graça em comparação. A disparidade é enorme.


A solução, no entanto, não é farmacológica. Trata-se de um processo psicológico de "ressignificar a experiência" e a própria noção de prazer. É preciso entender a diferença entre o prazer "sintético", potencializado quimicamente, e a conexão "real", que acontece na troca entre as pessoas. Como foi ampliado pela moderadora Fabi Mesquita durante o debate, essa jornada se conecta a uma reflexão maior sobre uma sociedade que nos impõe uma espécie de tirania da felicidade, ensinando-nos a buscar picos de euforia constantes e a não tolerar o tédio, a frustração ou o sofrimento. Parte do caminho é aceitar que a vida não acontece "110% do tempo no paraíso". O sexo, assim como a vida, tem altos e baixos, e encontrar beleza e satisfação nessa realidade é o verdadeiro desafio.


No fim das contas, fica claro que não existe uma "receita de bolo" para parar ou reduzir o uso de substâncias no chemsex. Fica a lição de que o caminho passa menos pela química e mais pelos rituais, pela autonomia, pelos afetos e por uma corajosa renegociação com o próprio prazer. É uma jornada única, pessoal e que envolve muito mais do que a relação do indivíduo com a droga.


Se o cuidado não pode ser imposto, como nós, enquanto comunidade, podemos criar espaços mais seguros para que um pedido de ajuda possa finalmente surgir e ser acolhido sem julgamentos?


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