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Corpo em Transe. Como o chemsex afeta o organismo em curto e longo prazos.

TÍTULO

Corpo em Transe. Como o chemsex afeta o organismo em curto e longo prazos.


CONVIDADOS(AS)


  • Reynaldo Estevez: Médico psiquiatra, especialista em farmacogenética, psicofarmacologia avançada e dependência química, com atuação clínica e voluntária voltada à população LGBTQIAPN+. Sua experiência em saúde mental, sexualidade e uso de substâncias fortalece o debate técnico do Seminário, contribuindo para desmontar estigmas e ampliar caminhos de cuidado e compreensão sobre o chemsex.

  • Uno Vulpo: Médico e criador de uma plataforma inovadora sobre redução de danos e sexualidade, reconhecida pelo conteúdo acessível e bem-humorado. Atuando também na rede Sampa Trans e no processo transsexualizador do SUS, traz ao Seminário uma visão prática, crítica e profundamente conectada às vivências das pessoas que vivem o chemsex.

  • Renan Ormenese: Psicólogo especializado em Fenomenologia e Saúde Mental, com trajetória marcada pelo cuidado em territórios, vínculos e práticas coletivas. Sua atuação clínica, orientada pela diversidade dos modos de existir e pela redução de danos, enriquece o Seminário ao aproximar sexualidade, uso de substâncias e saúde mental com rigor ético, sensibilidade e perspectiva não moralizante.


MODERADORES

Alvaro Sousa e Pierre Freitaz


DETALHES

Mesa de debate, realizada no 2º SEBRASCHEM. Os participantes, incluindo um psiquiatra, um médico e criador de conteúdo, e um psicólogo, discutem os impactos do chemsex (uso sexualizado de substâncias) nos níveis físico, sensorial e neurológico. O debate cobre a psicofarmacologia de substâncias como cocaína, metanfetamina, cetamina e GHB, explicando seus efeitos no sistema nervoso central, bem como os riscos de dependência e as mudanças na percepção corporal durante o uso. Além disso, a conversa aborda a importância da redução de danos, a responsabilidade individual, as interações medicamentosas (incluindo antirretrovirais e terapia hormonal em pessoas trans), e a necessidade de apoio e cuidado para lidar com os danos agudos e crônicos do uso de substâncias.



A vida moderna é uma busca incessante por intensidade – em nossas carreiras, em nossas paixões e, para muitos, em nossa intimidade. Um dos caminhos explorados nesse percurso, o uso sexualizado de substâncias — conhecido como chemsex —, é um fenômeno complexo que vai muito além da festa. Para desvendar suas camadas mais profundas, um painel de especialistas se reuniu no 2º Seminário Brasileiro de Redução de Danos no Uso Sexualizado de Substâncias (Chemsex | Sexo Aditivado). Este artigo destila os insights mais impactantes de médicos e psicólogos para revelar como essas práticas afetam, de maneiras surpreendentes, o corpo e a mente.


O Pico de Prazer é 80 Vezes Mais Intenso que o Natural (e Isso Explica Muita Coisa)


No centro do nosso cérebro existe uma área responsável pelo prazer. O psiquiatra Reinaldo Esteves explica que estímulos naturais, como ouvir uma música que você ama ou comer algo delicioso, ativam essa via em uma proporção que podemos chamar de "uma vez". No entanto, quando substâncias estimulantes como cocaína ou metanfetamina entram em cena, essa mesma via é ativada em uma proporção 80 vezes maior.


Essa verdadeira "tempestade" de dopamina e noradrenalina explica por que a experiência é tão potente. Ao mesmo tempo, cria um caminho facilitador para a dependência. Isso recalibra o que o cérebro entende como "prazeroso", tornando a alegria de uma conversa ou o sabor de uma refeição favorita quimicamente pálidos em comparação. Qualquer prazer gerado pelo próprio corpo (endógeno) parece incomparavelmente menor depois de um estímulo tão avassalador.


"...com essas substâncias a gente tem uma essa tempestade que você colocou de noradrenalina e dopamina e essa mesma via que a gente consegue estimular endogenamente ela é estimulada 80 vezes então é uma proporção assim muito diferente é uma mudança muito gritante do estímulo de prazer."

A Mesma Droga, Efeitos Diferentes: Por que seu Corpo Não Reage como o dos Outros


É uma ideia contraintuitiva, mas não existe uma experiência universal com uma substância. Reinaldo Esteves esclarece que a chave para essa variação está em uma combinação de fatores, começando pelo metabolismo individual. Nossos corpos processam substâncias de maneiras drasticamente diferentes, que podem ser classificadas em:


  • Metabolizadores lentos: Usam uma quantidade menor da substância e o efeito dura muito mais tempo no organismo.

  • Metabolizadores normais: O corpo processa a substância dentro do tempo esperado pela ciência.

  • Metabolizadores rápidos ou ultrarrápidos: A substância fica pouquíssimo tempo no organismo, o que leva a pessoa a precisar de mais doses para manter o efeito desejado.


A essa variação biológica somam-se a pureza desconhecida da substância e o histórico de uso de cada um. Mas, como aponta o médico Uno Vulpo, existe uma quarta variável crucial: o contexto. O ambiente, as pessoas envolvidas e a situação emocional modulam profundamente a experiência. Por tudo isso, a busca por uma "vibe" coletiva e igualitária — aquela em que a droga "bate em todo mundo ao mesmo tempo" — é uma meta irreal e potencialmente perigosa.


Você Nunca Mais Sentirá o Efeito da Primeira Vez (e é Perigoso Tentar)


O sistema nervoso humano é plástico, ou seja, ele se molda e se adapta. Segundo Reinaldo Esteves, é exatamente essa capacidade de adaptação que explica o fenômeno da tolerância. Com o uso repetido, o corpo se acostuma com a presença da substância, exigindo doses cada vez maiores para alcançar um efeito que, mesmo assim, será proporcionalmente menor ao inicial. A euforia original se torna, literalmente, inalcançável.


"a primeira vez que eu usei cocaína nossa eu nunca mais alcancei aquele efeito daquela primeira vez de fato não vai se alcançar nem aumentando a dose..."

Essa perseguição frustrada do "primeiro high" é um dos principais motores do uso abusivo. Ela leva a um consumo crescente de substâncias em uma tentativa de replicar uma experiência passada que a biologia do corpo já tornou impossível, aumentando drasticamente os riscos associados. Mas se a busca pelo prazer é uma corrida biológica de retornos decrescentes, para algumas comunidades a linha de partida é completamente diferente. Não se trata de prazer, mas de sobrevivência.


Para Muitas Pessoas Trans, o Uso de Substâncias Não é Diversão, é Sobrevivência


Enquanto as seções anteriores exploram a neuroquímica do prazer, a fala do médico Uno Vulpo nos força a confrontar uma realidade onde essa química é secundária. Aqui, a substância não é um amplificador de desejo, mas uma ferramenta de trabalho imposta pela violência e pela necessidade econômica. Ele destaca que, para muitas mulheres trans que são profissionais do sexo, o uso de substâncias não é uma escolha recreativa.


Nesse contexto, a droga se torna uma ferramenta quase compulsória. Frequentemente, o uso de cocaína ou outras substâncias é uma "demanda" imposta por clientes ou uma necessidade para "segurar a noite" e conseguir trabalhar. A substância deixa de ser sobre prazer e passa a ser funcional, um "remédio" para suportar a atividade laboral.


"...muitas meninas acabam entrando em contato com a cocaína... de forma compulsória né então elas obrigatoriamente vão acabar ali eh tendo que fazer sexo dessa forma não por uma opção mas porque o cliente pede o cliente paga mais o cliente leva briga bate né..."

Essa realidade transforma a conversa sobre dependência e redução de danos. O tema deixa de ser apenas sobre festa e prazer e se conecta diretamente a questões de vulnerabilidade social, exploração e sobrevivência.


O "Luto do Corpo": Aceitando as Mudanças Após o Uso Intensivo


O fim de um período de uso intensivo de substâncias raramente é silencioso. Para muitos, ele chega com um eco no corpo – uma nova realidade física que exige um acerto de contas. O psicólogo Renan Ormenese descreve esse processo como um "luto do corpo", um momento profundo de confronto com as consequências, que podem incluir disfunção erétil, exaustão crônica ou a incapacidade de sentir prazer sexual sem o uso das substâncias.


O processo terapêutico, nesse caso, é encarado como um luto, onde a pessoa precisa aceitar que o corpo mudou e que "algo que eu tinha já não tenho mais". É preciso abraçar a ideia de que o corpo é mutável. A aceitação desse "novo corpo" se torna o primeiro passo para reconstruir uma identidade, encontrar novas formas de prazer e, muitas vezes, finalmente confrontar as questões internas que o uso de substâncias servia para "anestesiar".


Autonomia é Cuidado


Entender as complexas camadas do chemsex (da neuroquímica cerebral às vulnerabilidades sociais) é um ato de poder e autonomia. Seja entendendo a tempestade química no cérebro ou o luto de um corpo que mudou, a informação nos devolve o poder de cuidar. Redução de danos, portanto, não é sobre proibir, mas sobre equipar: com conhecimento, com autoconsciência e com a coragem de reconhecer nossos limites.


Com essas informações em mente, como podemos construir diálogos mais honestos e redes de apoio mais eficazes para cuidar de nós mesmos e de nossa comunidade?


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