Entre Aplicativos e Festas. O Papel das Plataformas Digitais no Chemsex
- João Geraldo Netto

- há 1 dia
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TÍTULO
Entre Aplicativos e Festas. O Papel das Plataformas Digitais no Chemsex.
CONVIDADO
Emerson Lucas Camargo: Psicólogo clínico e doutorando em Ciências pela USP, com trajetória dedicada à pesquisa em doenças infecciosas e, mais recentemente, ao estudo do chemsex em múltiplos contextos. Morador de Ribeirão Preto, chega ao seminário com entusiasmo para seu primeiro encontro presencial sobre o tema, trazendo rigor científico e disposição para troca e construção coletiva.
Marina Del Rei: Psicóloga, pesquisadora e redutora de danos, ela investiga o chemsex desde 2019 e desenvolve estratégias de cuidado diretamente nos aplicativos, oferecendo suporte e informações qualificadas. No Seminário, traz uma perspectiva clínica e crítica essencial para avançarmos em políticas públicas e práticas de cuidado alinhadas à realidade brasileira.
MODERADORES
Marcelo Russo e Fabi Mesquita
DETALHES
Mesa de debate focando no impacto das plataformas digitais no contexto do chemsex (uso sexualizado de substâncias). A mesa, intitulada "Entre Aplicativos e Festas," conta com os palestrantes Marina Del Rei, que discute estratégias de redução de danos dentro dos aplicativos, e Emerson Lucas Camargo, que traz uma perspectiva psicológica sobre como a disponibilidade digital imediata altera o comportamento e a saúde mental dos usuários. O debate aborda a natureza dupla das plataformas, vendo-as não apenas como espaços de risco e compulsão, mas também como territórios potenciais para pertencimento, conexões reais e redes de proteção, especialmente diante da censura e da falta de ética das empresas. A discussão final sugere a necessidade de modernizar as políticas públicas de saúde para o ambiente digital e pressionar as plataformas a assumirem responsabilidade pela segurança e pelo bem-estar de seus usuários.
O termo chemsex refere-se ao uso intencional de substâncias psicoativas para facilitar ou intensificar práticas sexuais. Nesse cenário, os aplicativos de encontro se tornaram ferramentas centrais, funcionando como um ponto de conexão imediata para encontrar parceiros e organizar esses encontros. No entanto, o papel dessas plataformas é complexo e multifacetado.
Este texto tem como objetivo apresentar uma visão equilibrada sobre o tema, sob a ótica da Redução de Danos — uma abordagem de saúde pública, prática e compassiva, que busca minimizar as consequências negativas associadas a certos comportamentos, em vez de julgá-los ou condená-los. Vamos explorar como, embora apresentem perigos reais, os aplicativos de encontro também funcionam como espaços valiosos de conexão, negociação, cuidado e construção de redes de apoio.
O Lado Sombrio: Os Riscos nas Plataformas Digitais
A natureza anônima, imediata e quase infinita dos aplicativos de encontro pode, em muitos casos, criar um ambiente propício para situações de risco, que vão desde a compulsão até a violência física, afetando uma ampla gama de usuários.
A Compulsão do "Cardápio Infinito"
O psicólogo Emerson Lucas Camargo destaca que a disponibilidade 24 horas de parceiros e substâncias, acessível na palma da mão, pode acelerar comportamentos compulsivos. Essa dinâmica, que ele descreve como uma "uberização" do sexo, reflete a comoditização da conexão humana: os parceiros se tornam descartáveis e transacionais, erodindo a intimidade em favor de uma busca incessante pelo próximo encontro. Cria-se um ciclo de busca por dopamina que, na verdade, mascara a falta de uma conexão real e profunda. Como aponta Emerson, citando um estudo sobre veteranos de guerra, o vício muitas vezes floresce na ausência de vínculos. O "cardápio infinito" paradoxalmente dificulta a satisfação da necessidade humana fundamental de se conectar, alimentando um padrão de insatisfação constante.
Essa análise, no entanto, não deve se restringir a um único recorte. É crucial reconhecer que usuários marginalizados também participam desse universo, muitas vezes com substâncias como o crack, que não são tipicamente associadas à cena chemsex hegemônica, ampliando o espectro de vulnerabilidades.
A Pressão pela Performance Perfeita
Plataformas como Twitter e sites de conteúdo adulto exercem uma forte pressão para performar uma "sexualidade quimicamente turbinada". Os usuários são expostos a um ideal de performance — corpos padronizados, ereções constantes e resistência sobre-humana — que não corresponde à realidade.
Emerson utiliza uma analogia poderosa: assim como um filme de ação com Arnold Schwarzenegger, o pornô é cinema. É uma performance editada, com bastidores, e não um retrato fiel da sexualidade. Tentar se comparar a esse ideal gera sofrimento psíquico. Contudo, essa pressão cria vítimas nos dois lados da tela. Muitos atores e atrizes pornô, frequentemente em situação de vulnerabilidade financeira, relatam precisar se "anestesiar de alguma forma" para conseguir performar, revelando que a indústria do sexo digital pode ser tão danosa para quem produz o conteúdo quanto para quem o consome.
Decepção e Violência: Quando o Encontro Dá Errado
Os riscos dos encontros marcados online não são apenas psicológicos. A psicóloga Marina Del Rei relata casos graves, como o de um homem drogado com quetamina pelo parceiro para ser roubado. Além da violência direta, há os perigos de perfis falsos, como o caso de João, que descobriu que um desconhecido usava suas fotos no Tinder para enganar outras pessoas.
A relação com o perigo, no entanto, é complexa. Marina observa que, para alguns, "a noção do perigo e do risco ela é muito excitante". O mesmo homem que sofreu a violência, um tempo depois, foi visto no aplicativo praticando o fetiche da "porta aberta", no qual se deixa a casa destrancada para parceiros desconhecidos. Isso ilustra a contraditória relação entre trauma, busca por risco e excitação sexual.
Apesar de todos esses perigos evidentes, existe um outro lado poderoso e positivo no uso dessas tecnologias, que transforma o risco em oportunidade de cuidado.
Mais que um Match. Os Apps como Espaços de Cuidado e Conexão
Demonizar os aplicativos de encontro como meros catalisadores de risco é uma visão incompleta. Na prática, eles também funcionam como ferramentas potentes para a construção de segurança, comunidade e pertencimento.
Um Espaço para Negociar e Se Proteger
Segundo a psicóloga Marina Del Rei, a comunicação via chat antes do encontro físico pode ser um importante espaço protetor. O motivo é claro: muitas negociações sobre limites e prevenção "podem ser mais desafiadoras ali na hora h". O ambiente digital oferece um espaço de menor pressão que empodera os usuários. Ela destaca dois benefícios principais:
Negociação de práticas: O ambiente virtual permite que as pessoas alinhem expectativas e estabeleçam limites claros sobre o que desejam fazer sexualmente e em relação ao uso de substâncias, de forma mais confortável do que fariam presencialmente.
Negociação de prevenção: O chat facilita o diálogo sobre métodos de prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), como o HIV, tornando um assunto delicado mais acessível e direto.
Redes de Apoio e Informação na Ponta dos Dedos
Os aplicativos também se tornaram canais para pedir ajuda e trocar informações qualificadas. O trabalho da própria Marina é um exemplo disso: ela utiliza as plataformas para oferecer suporte, e os usuários a procuram para tirar dúvidas sobre os efeitos de substâncias, desabafar sobre preocupações ou simplesmente para conversar com alguém que entende seu contexto sem julgamentos. Esses espaços se mostram muito potentes para a construção de laços de cuidado.
Encontrando sua Tribo. Pertencimento e Vínculos Reais
Contrariando a ideia de que os aplicativos só geram conexões superficiais, as plataformas e a própria cena do chemsex podem ser ambientes afirmativos, onde os usuários se sentem incluídos, livres e parte de uma comunidade.
Um dos moderadores do debate compartilhou uma experiência pessoal que ilustra isso perfeitamente: ele começou a usar o Grindr para conhecer vizinhos em sua região. Um desses encontros, embora tenha começado com uma intenção sexual, evoluiu para uma amizade sólida e divertida, baseada em interesses em comum como videogames e quadrinhos. Isso prova que é possível criar vínculos que vão muito além do sexo, transformando um "match" em uma relação de afeto genuíno.
A existência desses espaços de apoio, no entanto, não elimina a necessidade de os usuários adotarem práticas ativas para garantir a própria segurança.
Navegando com Segurança. Estratégias Práticas de Autocuidado
Com base nas dicas compartilhadas pelos especialistas, é possível criar um guia prático para ajudar qualquer pessoa a se proteger ao usar aplicativos de encontro. Adotar essas estratégias de autocuidado é fundamental para minimizar os riscos.
Encontro Inicial: Se possível, encontre a pessoa em um lugar público pela primeira vez.
Aviso de Segurança: Sempre avise um amigo de confiança sobre o encontro. Envie a localização em tempo real e combine um horário para que essa pessoa verifique se está tudo bem.
Verificação de Identidade: Tente confirmar se a pessoa é quem diz ser. Uma dica prática é pedir o número do WhatsApp e simular uma transferência via Pix para ver o nome completo associado à chave. Em conversas mais abertas, se a pessoa compartilhar o nome completo, é possível buscar por processos em sites públicos.
Uso de Substâncias: Consuma substâncias com moderação, especialmente na companhia de desconhecidos. Mantenha o controle sobre o que e o quanto você está usando.
Consentimento é Revogável: Lembre-se de que o consentimento pode ser retirado a qualquer momento. Se você combinou algo e mudou de ideia, tem todo o direito de dizer "não".
Dicas Específicas para Mulheres:
Existem aplicativos criados por mulheres para compartilhar informações e alertas sobre homens.
Ao usar um carro de aplicativo (como Uber), simule uma ligação para um amigo ou familiar, dizendo que está chegando e que a pessoa pode esperar na porta. Isso pode inibir comportamentos inadequados do motorista.
O cuidado, porém, não deve ser apenas uma responsabilidade individual. As empresas por trás dessas tecnologias também têm um papel crucial a desempenhar.
O Papel das Plataformas e o Futuro do Cuidado
A lógica comercial que move os aplicativos de encontro muitas vezes se sobrepõe à preocupação com o bem-estar e a segurança dos usuários. A busca por lucro quase sempre fala mais alto que a responsabilidade ética.
Lucro vs. Responsabilidade
A seguir, um contraste entre a forma como as plataformas operam hoje e como poderiam atuar em um futuro mais responsável:
A Realidade Atual | Um Futuro Possível |
Foco no Lucro e Evasão de Responsabilidade: Empresas como o Grindr evitam se envolver em questões de saúde para não assumir responsabilidades legais ou manchar sua reputação. | Compromisso com o Cuidado: As plataformas se tornam parceiras ativas na promoção da saúde, integrando a redução de danos em seu modelo de negócio. |
Ausência de Suporte Integrado: Não há ferramentas de ajuda para usuários em vulnerabilidade, apesar de as plataformas monitorarem dados como tempo de uso e geolocalização. | Ferramentas de Ajuda Proativas: Inclusão de um botão de ajuda para dúvidas sobre substâncias e consentimento, e envio de notificações de cuidado como: "Notamos que você está online há muitas horas. Está tudo bem?" |
Prevenção Desconectada da Realidade Digital: As políticas públicas de saúde, como as do SUS, permanecem "analógicas" e com dificuldade de alcançar os usuários onde eles estão. | Parcerias Estratégicas com o Setor Público: Integração com o SUS para modernizar as campanhas de prevenção, levando-as para dentro dos aplicativos. |
A Força da Comunidade
A mudança não precisa vir apenas "de cima para baixo". A pressão exercida pela própria comunidade de usuários pode gerar resultados significativos. Um exemplo disso foi a campanha "Kinder Grindr" (Um Grindr Mais Gentil). Após inúmeras críticas sobre o ambiente tóxico e preconceituoso da plataforma (com filtros por raça e status de HIV), o Grindr foi forçado a repensar suas funcionalidades e a lançar uma campanha para melhorar sua imagem. Isso demonstra que a mobilização coletiva é uma ferramenta poderosa para exigir mais responsabilidade das empresas.
Essa complexa interação entre tecnologia, comportamento individual e responsabilidade corporativa nos leva a uma reflexão final sobre a natureza dessas ferramentas.
A Ferramenta e o Uso que Fazemos Dela
No fim das contas, os aplicativos de encontro não são inerentemente bons ou maus. Eles são ferramentas, e seu impacto depende fundamentalmente do uso que fazemos deles, da responsabilidade que as empresas assumem e do cuidado que a sociedade decide cultivar.
O desafio é transformar esses ambientes, muitas vezes hostis, em territórios de acolhimento, prazer e proteção. Isso exige o fortalecimento da agência pessoal de cada um, a construção de vínculos de apego seguro e o cultivo de uma resiliência comunitária. Como foi dito de forma brilhante no encerramento do debate, a tecnologia é como uma faca. "Você decide se usa a faca para cortar uma cenoura ou para matar alguém."



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