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Além da Clínica. Como Construir Redes de Cuidado entre Pares

TÍTULO

Além da Clínica. Como Construir Redes de Cuidado entre Pares?


CONVIDADOS(AS)


  • Betinho Pereira: Presidente do Projeto Bem-Me-Quer e referência em HIV/aids há 34 anos, traz ao Seminário uma trajetória marcada pela defesa de populações vulneráveis e pelo enfrentamento ao estigma. Sua experiência em prevenção, ativismo político e projetos ligados ao chemsex enriquece o debate e fortalece a construção coletiva de caminhos mais humanos e eficazes em saúde.

  • Anderson Reis: Com ampla atuação na saúde masculina e LGBT, Anderson Reis traz ao Seminário uma perspectiva construída entre hospital, comunidade e ações em festas e territórios urbanos da Bahia. Sua experiência une cuidado clínico, pesquisa e práticas de redução de danos, contribuindo para um debate que busca ampliar acesso, traduzir ciência e fortalecer respostas ao chemsex no Brasil.

  • Rafael Anjos: Psicólogo e pós-graduando em Neuropsicologia e Terapia de Casal e Familiar, com atuação clínica e organizacional em São Paulo. Seu interesse pelas interseções entre saúde mental, marginalização e estratégias de cuidado amplia o olhar do Seminário, trazendo perspectivas fundamentais para o debate interdisciplinar sobre o chemsex.


MODERADORES

Fabi Mesquita e Isadora Carvalho


DETALHES

Debate aprofundado entre ativistas, psicólogos e profissionais de saúde sobre a temática do cuidado entre pares, focando no contexto do HIV/aids e, mais recentemente, do chemsex (uso de substâncias em contextos sexuais). Os participantes discutem a importância histórica da solidariedade e do apoio mútuo, que foi vital durante a epidemia de aids nos anos 1980 e 1990, e exploram como esses modelos podem ser aplicados aos desafios contemporâneos do chemsex, onde o estigma e o moralismo ainda dificultam a busca por ajuda. A conversa enfatiza a necessidade de linguagem acessível, afeto e o reconhecimento das vulnerabilidades, especialmente em populações marginalizadas, destacando que as redes de pares frequentemente assumem o papel de apoio que deveria ser oferecido pelo Estado. Por fim, os especialistas concordam que o afeto e o respeito são as ferramentas mais poderosas para combater a narrativa de punição e garantir que os usuários do chemsex recebam cuidado.




O Cuidado Além dos Muros da Clínica


Falar sobre cuidado em contextos atravessados pelo estigma, como o uso de substâncias, é uma tarefa complexa. Muitas vezes, o debate fica restrito a protocolos técnicos, diagnósticos e à frieza dos consultórios. No entanto, a saúde real, aquela que acolhe, protege e transforma, raramente acontece nesses espaços. Ela floresce em redes de afeto, na solidariedade entre pares e na coragem de construir comunidade onde o sistema falha em chegar.


Recentemente, o 2º Seminário Brasileiro de Redução de Danos no Chemsex (SEBRACHEM) reuniu ativistas, pesquisadores e profissionais para debater exatamente isso: como construir redes de cuidado que vão além da clínica. As reflexões compartilhadas na mesa "ALÉM DA CLÍNICA. COMO CONSTRUIR REDES DE CUIDADO ENTRE PARES" foram um lembrete poderoso de que as ferramentas mais eficazes de cuidado são, na verdade, profundamente humanas. A seguir, exploramos as lições mais impactantes desse encontro sobre como o afeto e a escuta se tornam a mais potente política de saúde.


O Paradoxo da Solidariedade: Por que o Apoio Entre Pares no Chemsex é Mais Desafiador


A força da ajuda mútua, que foi fundamental na resposta à epidemia de HIV/Aids, encontra novos e complexos obstáculos no cenário do chemsex.


Betinho Pereira, ativista com 34 anos de experiência na luta contra o HIV/Aids, trouxe uma comparação reveladora. Ele relembrou que, nos anos 80 e 90, encontrar outra pessoa vivendo com HIV era um momento de alívio e conexão. Naquele mar de desinformação e preconceito, compartilhar a experiência era um ato libertador que fortalecia a comunidade.


Hoje, a realidade é diferente. O estigma associado ao uso de substâncias é tão intenso que o silêncio prevalece, mesmo entre pessoas que compartilham a mesma prática. Muitos usuários se escondem por medo do julgamento, não apenas da sociedade, mas de seus próprios pares. Betinho observa que, por conta disso, a busca por ajuda individualizada tem se tornado mais comum do que a participação em grupos de debate, desafiando o modelo clássico de autoajuda que salvou tantas vidas em outra época.


Isso demonstra que o primeiro ato político do cuidado é criar segurança, uma tarefa que se tornou paradoxalmente mais difícil mesmo com a evolução do nosso conhecimento médico.


A Família que Escolhemos: O Primeiro Passo é Desconstruir o que nos Ensinaram


A rede de afetos que escolhemos é um fator de proteção vital, mas exige a desconstrução de conceitos que aprendemos a vida toda.


Para muitas pessoas, especialmente na comunidade LGBTQIAPN+, a "família real" não é a de sangue, mas a rede de afetos escolhida ao longo da vida. Como apontado por Fabi Mesquita e Rafael Anjos, essa rede de amigos e parceiros atua como um fator de proteção essencial, um porto seguro contra a violência e a exclusão. No entanto, essa fortaleza pode ser abalada por dentro. O mesmo moralismo e julgamento que vêm de fora podem se infiltrar na comunidade, fazendo com que as pessoas se isolem por medo de não serem compreendidas justamente por quem mais importa.


Rafael Anjos destacou que as estruturas tradicionais e acadêmicas de "família" falham em representar a diversidade das configurações afetivas reais. Elas representam, na verdade, uma pequena minoria. Para ser um verdadeiro ponto de apoio para alguém, o primeiro e mais crucial passo é desconstruir os conceitos pré-concebidos que nos ensinaram sobre o que é uma família, um relacionamento ou uma rede de cuidado. É preciso abrir espaço para o que é, e não para o que deveria ser. Reconhecer e validar essas novas configurações familiares é, em si, uma política de afeto que combate o isolamento imposto por modelos ultrapassados.


O Excesso de Técnica e a Ausência de Afeto: Onde a Saúde Realmente Acontece


Nenhuma abordagem terapêutica funciona sem conexão humana; o afeto não é um complemento, mas a base de todo cuidado real.


Vivemos "tempos de excesso de técnicas e ausências de afetos". Essa reflexão do psicólogo Rafael Anjos é um diagnóstico preciso do estado atual de muitas práticas de saúde. Ele argumenta que, sem afeto, nenhuma abordagem terapêutica, por mais sofisticada que seja, pode funcionar. É o afeto que constrói as pontes, que gera a confiança necessária para que a pessoa se sinta segura para ser vulnerável. É o que transforma um atendimento em um encontro humano.


A ausência de afeto por parte de um profissional de saúde não é apenas um detalhe ou uma falha de "jeito", mas um erro fundamental no próprio ato de cuidar. Quando um profissional se esconde atrás de um jaleco ou de um protocolo, ele se distancia da única coisa que pode, de fato, promover a cura: a conexão com o outro.


Portanto, insistir no afeto como pré-requisito para o cuidado é um ato político contra a desumanização dos sistemas de saúde.


Nós Temos Voz, o que Falta é Escuta: A Arrogância de "Dar a Voz"


A arrogante ideia de "dar voz" ignora a verdadeira necessidade das comunidades: espaços onde suas vozes já existentes sejam de fato ouvidas.


O problema das comunidades marginalizadas nunca foi a falta de voz. O problema sempre foi a falta de escuta. Rafael Anjos compartilhou uma anedota poderosa sobre um seminário em que um palestrante insistia na importância de "dar voz" a uma comunidade. Uma pessoa da plateia o interrompeu para corrigir: voz, eles tinham de sobra; o que faltava era quem estivesse disposto a escutar de verdade.


Essa ideia foi complementada por Fabi Mesquita, que apontou a arrogância embutida na própria expressão "dar a voz". Ela parte do pressuposto de que o poder está com quem concede, e não com quem fala. A verdadeira mudança não vem de oferecer um microfone, mas de criar e sustentar espaços onde as vozes que já existem sejam ouvidas, valorizadas e, principalmente, levadas a sério pelas instituições e pela sociedade. A transformação começa quando a escuta se torna mais importante do que o discurso.


Transformar o ato de ouvir em uma prática política ativa é o que verdadeiramente redistribui o poder e valida a experiência de quem é historicamente silenciado.


O Asfalto Sabe Mais que o Consultório: A Falha do Sistema em Chegar Onde a Vida Acontece


O sistema de saúde formal falha quando sua linguagem e seus muros não alcançam os territórios onde a vida e as vulnerabilidades realmente acontecem.


Existe um abismo entre o sistema de saúde e a realidade vivida nas ruas, festas, aplicativos e periferias. Essa desconexão se manifesta de duas formas: uma barreira interna, dentro das próprias profissões, e uma falha externa, nas instituições. Anderson Reis, enfermeiro que atua em espaços comunitários na Bahia, ilustra a primeira ao relatar como é constantemente questionado por seus pares: "mas pera aí, esse é lugar para enfermeiro?". Essa resistência mostra como a própria academia e os conselhos profissionais podem limitar o cuidado ao se apegarem a ambientes estéreis e controlados, ignorando a necessidade de construir uma "relação de confiança" onde a vida pulsa.


Essa barreira interna é complementada pela falha institucional, como mostra o exemplo de Betinho Pereira sobre um grande CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de São Paulo. Ao serem procurados para discutir o tema do chemsex, os profissionais admitiram abertamente sua falta de preparo.


Nós não estamos preparados para atender as populações que vêm com com o tema aqui em sexo a gente não sabe falar sobre metanfetamina.


Essa confissão revela uma falha estrutural gigantesca: o sistema não está chegando onde as pessoas estão. Essa dupla falha — a interna, dos profissionais, e a externa, das instituições — revela que a política de cuidado mais urgente é levar o saber para a rua e trazer o saber da rua para dentro do sistema.


Qual a Ferramenta Mais Poderosa?


Ao final do debate, ficou claro que as lições mais importantes não estavam em manuais ou protocolos, mas na sabedoria da vivência. As reflexões apontaram para uma verdade inescapável: o cuidado mais eficaz é político, afetivo e construído em comunidade. Ele exige que se derrubem os muros entre o saber técnico e o saber da experiência, entre o profissional e o par.


Questionados sobre qual seria a ferramenta mais poderosa para combater o estigma e a punição, a resposta coletiva dos palestrantes foi uníssona. Não se trata de uma única técnica ou política pública, mas de uma combinação de elementos fundamentalmente humanos: afeto, respeito, solidariedade e a compreensão radical de que o cuidado é sobre proteger o direito de cada pessoa à sua própria produção de vida, em toda sua complexa humanidade.


E na sua comunidade, como o afeto pode se transformar na mais potente política de cuidado?


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