Travestis, Trabalhadoras(es) do Sexo e Chemsex. Visibilizar o que o estigma apaga
- João Geraldo Netto

- há 4 dias
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TÍTULO
Travestis, Trabalhadoras(es) do Sexo e Chemsex. Visibilizar o que o estigma apaga
CONVIDADOS(AS)
Val Santos: Professora, educadora popular em saúde e redutora de danos há quase duas décadas, traz ao Seminário a força das ruas de Manaus e das trabalhadoras sexuais amazônicas. Sua experiência direta com populações vulnerabilizadas e seu olhar atento sobre o chemsex no Norte do país tornam sua participação essencial para ampliar estratégias e realidades pouco visíveis no debate nacional.
Marcelo Russo: Publicitário, produtor audiovisual e profissional do sexo, atua na conscientização sobre saúde sexual por meio das redes e de um documentário autoral. Morador do centro de São Paulo, ele reforça a importância de discutir o chemsex sem moralismos. Sua presença no Seminário amplia perspectivas e destaca narrativas fundamentais da comunidade queer.
Gabriela Andrade Feitosa: Criadora de conteúdo adulto e profissional do sexo, Gabriela traz ao Seminário uma perspectiva fundamental: a voz de quem vive a sexualidade como trabalho e expressão, rompendo estereótipos e ampliando o debate sobre autonomia, prazer e cuidado. Sua participação enriquece o evento ao trazer realidades diversas e necessárias para compreender o chemsex em múltiplos contextos.
MODERADORES
Fabi Mesquita e Thiago Jerohan
DETALHES
Painel de discussão focado nas vivências de travestis, profissionais do sexo e usuários de chemsex, abordando como o estigma social impacta suas vidas, saúde e trabalho. Os participantes, incluindo Val Santos, Marcelo Russo e Gabriela Andrade, compartilham suas experiências em diferentes contextos geográficos, como a realidade do Norte do Brasil em contraste com o Sudeste, destacando a variação no uso de substâncias e as vulnerabilidades enfrentadas. A discussão central gira em torno da intersecionalidade de gênero, corpo e sobrevivência, examinando como racismo, transfobia e a violência de Estado se somam ao estigma do uso de drogas. Um ponto crucial é a crítica à definição colonizadora de chemsex, que exclui mulheres e profissionais do sexo, além da importância da redução de danos e da criação de redes de cuidado comunitário para mitigar a violência e promover a autonomia. A conversa também enfatiza a necessidade de assumir a própria narrativa e transformar essas vivências em pautas para políticas públicas que garantam direitos e segurança.
Em um palco montado em São Paulo, durante o 2º Seminário Brasileiro de Redução de Danos no Uso Sexualizado de Substâncias, a mesa de debate "TRAVESTIS, TRABALHADORES DO SEXO E CHEMSEX. VISIBILIZAR O QUE O ESTIGMA APAGA" reuniu vozes que raramente encontram espaço para serem ouvidas com a devida profundidade. O encontro propôs um mergulho em narrativas que revelam tanto a violência quanto a potência de existências atravessadas pelo estigma, racismo e transfobia.
No centro da conversa estavam três figuras com trajetórias distintas, mas conectadas pela urgência de humanizar o debate. Val Santos, indígena, mestranda em pedagogia e educadora popular, trouxe a força e a realidade das ruas de Manaus. Marcelo Russo, publicitário que hoje atua com produção audiovisual documental e tem o trabalho sexual como sua principal atividade, compartilhou sua perspectiva sobre a luta contra o moralismo em São Paulo. E Gabriela Andrade, criadora de conteúdo adulto e profissional do sexo há mais de uma década, defendeu a autonomia e a importância de estabelecer limites. Juntos, eles não falaram sobre trabalhadoras e trabalhadores do sexo, mas a partir de suas próprias vivências, construindo um painel que vai muito além dos estereótipos para revelar histórias de resistência, solidariedade e cuidado mútuo.
Para dar visibilidade ao que o estigma apaga, é preciso primeiro derrubar a barreira mais imediata: o preconceito moralista que julga o uso de substâncias sem compreender os contextos que o motivam.
O Prisma do Preconceito: Duas Drogas, Dois Pesos
Marcelo Russo foi direto ao ponto ao desmascarar a hipocrisia social que envolve o uso de drogas. Para ele, o estigma não está na substância em si, mas em quem a utiliza. Ele ilustra essa disparidade com uma comparação contundente: enquanto um usuário em uma "festinha de sexo num bairro nobre" é visto como alguém envolvido em uma "prática fetichista", o "cracudo" que busca uma pedra na Cracolândia é tratado como um símbolo da "degradação humana".
A prática pode ser a mesma, o vício pode ser o mesmo, mas a percepção social é radicalmente diferente. Marcelo conclui que a raiz do julgamento é puramente classista. "A grande diferença tá no prisma que a gente inventou em separar", explica ele. "O filtro que a gente bota muitas vezes é moralista". A lição é clara: o estigma sobre drogas é, no final das contas, um estigma sobre pessoas.
Esse mesmo preconceito também apaga as diferentes realidades e motivações para o uso de substâncias no trabalho sexual, especialmente quando nos afastamos do eixo Rio-São Paulo para ouvir as vozes da Amazônia.
Sobrevivência Antes do Prazer: Realidades do Sexo com Substâncias
A perspectiva de Val Santos, vinda de Manaus, desconstrói radicalmente o próprio conceito de "chemsex". Ela o define como "extremamente colonizador", um termo que não apenas ignora a realidade amazônica, mas que ativamente apaga as mulheres de sua definição acadêmica, que o restringe a uma "prática de homens que fazem sexo com homens". Para as trabalhadoras sexuais na Amazônia — mulheres cis, travestis e trans, muitas delas meninas de "9 anos, 10 anos para cima" — o uso de substâncias raramente tem a ver com prazer. É uma ferramenta de sobrevivência.
É um sexo com substância "para ganhar dinheiro", diz Val, para suportar a dor de múltiplos clientes e as violências que vêm com eles. Para mulheres que sustentam suas famílias, que pensam "eu tenho cinco filhos... eu tenho que sustentar aqueles filhos", a lógica é brutal. Elas usam para aguentar. Uma jovem relata ter feito "30 programas hoje", uma jornada extenuante para garantir o sustento. A droga se torna um anestésico necessário, pois não há espaço para pensar na dor que virá no dia seguinte. "Não interessa a substância que eu vou usar", explica Val sobre a mentalidade imposta pela necessidade. "Eu me submeto a todo tipo de violência e outro dia, por exemplo, eu tô toda espancada, eu tô toda estuprada, mas eu tenho dinheiro para levar para ter meus filhos comerem".
A tabela abaixo, baseada no relato de Val, resume o abismo entre as duas realidades:
Característica | Conceito "Chemsex" (Eixo Rio-SP) | Realidade Amazônica (Manaus) |
Motivação Principal | Prazer e diversão | Sobrevivência: "para ganhar dinheiro", "para não ter... dor", sustentar a família |
Substâncias Comuns | Drogas sintéticas importadas (ex: Tina) | Cocaína, álcool ("corote"), maconha |
Contexto de Uso | Classe média, festas | Vulnerabilidade, exploração infantil, trabalho de rua, necessidade econômica |
A pressão econômica também reverbera na experiência de Marcelo em São Paulo, que descreve o dilema constante: "pagar o boleto do condomínio ou eu vou virar madrugada com esse cliente aqui usando a droga que ele quer". Para Val, a conclusão é taxativa: as substâncias são usadas para "minimizar todas as violências que elas passam".
Diante dessa realidade de violência e da ausência do Estado, são as próprias comunidades que, de forma organizada e instintiva, criam suas redes de proteção.
"Uma Protege a Outra": Estratégias Comunitárias de Cuidado e Resistência
Como afirma Val, a dura realidade é que "a violência do estado chega primeiro" que o cuidado. Essa ausência forçou a criação de redes de apoio comunitárias, onde a proteção mútua se tornou a principal ferramenta de sobrevivência. A urgência dessas estratégias é visceral, marcada pela memória da perda. "Eu tive uma irmã trans trabalhadora sexual que foi morta pelo sistema", conta Val, dando um rosto à tragédia que acontece quando essas redes falham. São táticas nascidas da rua, baseadas na confiança, que funcionam como um sistema de redução de danos criado por e para as trabalhadoras.
Entre as principais estratégias, destacam-se:
Códigos de Alerta: O uso de linguagens próprias do território, como "lá vem a chuva", para avisar sobre a chegada da polícia e evitar uma abordagem violenta.
Segurança Compartilhada: Práticas simples, mas eficazes, como uma amiga anotar a placa do carro de um cliente antes da outra sair. Esse pequeno ato cria um registro e um senso de responsabilidade coletiva.
Alianças no Território: A negociação com donos de bares, boates e motéis para transformar esses locais em refúgios. As trabalhadoras oferecem materiais de prevenção e, em troca, ganham um espaço seguro para onde podem correr em caso de perigo.
Redução de Danos na Prática: Aconselhamentos diretos e pragmáticos, como orientar a compra de substâncias de um fornecedor confiável, testar doses menores para avaliar o produto e usar lenços umedecidos para a higiene quando não há acesso a banheiros, promovendo cuidado em meio à precariedade.
Essas estratégias de cuidado coletivo se somam a atos individuais de afirmação, num movimento poderoso para reivindicar a própria identidade e ressignificar a narrativa em torno do trabalho sexual.
"Eu Sou Puta": Ressignificando a Identidade e a Narrativa
Marcelo Russo conta como sua perspectiva mudou radicalmente ao ouvir, pela primeira vez, um colega de profissão se apresentar com orgulho: "sou puta". A naturalidade e a ausência de vergonha naquela afirmação o inspiraram a valorizar seu próprio trabalho não como um subemprego, mas como uma atividade digna. Essa mudança o levou a uma nova precificação do seu próprio valor, pois, como ele explica, "ser puta me fez dar muito mais valor pros meus outros trabalhos porque agora que eu cobro por hora eu sei muito bem dar valor a meia hora de publicitário, a meia hora de design, a meia hora de ilustrador".
Essa apropriação da identidade também passa pela imposição de limites, como destaca Gabriela. Sua postura é de uma autonomia inegociável. "Eu não atendo pessoas que oferecem qualquer tipo de coisa", afirma, estabelecendo uma fronteira profissional clara para manter o controle sobre seu corpo e seu trabalho. A capacidade de dizer "não" é fundamental para preservar a própria segurança e bem-estar.
Marcelo vai além e redefine seu papel, enxergando seu trabalho como uma forma de "terapia sexual". Para ele, o objetivo transcende o ganho financeiro; trata-se de criar "um lugar menos pesado, menos doloroso" para o cliente, transformando um encontro em um espaço de acolhimento e reflexão.
No entanto, essas vozes e estratégias, por mais potentes que sejam, não podem ficar restritas à comunidade. Elas precisam ecoar e se transformar em ação política e direitos garantidos.
Da Rua à Política Pública, Um Chamado por Direitos
A mensagem que emerge do debate é inequívoca: na ausência de um Estado que cuida, trabalhadoras e trabalhadores do sexo desenvolvem sofisticados sistemas de apoio. Agora, o passo mais urgente é que o Estado e a sociedade finalmente se disponham a ouvir essas vozes e transformar suas experiências em políticas públicas eficazes e humanas — uma necessidade nascida do trauma e da resiliência.
As propostas apresentadas pelos participantes apontam um caminho claro e urgente:
Falar abertamente: A mudança começa com o fim do tabu. Nas palavras diretas de Val, é preciso "falar mais sobre sexo, falar mais sobre gozar, falar mais sobre dar o cu, dar o priquito". A comunicação honesta é a principal ferramenta contra o estigma.
Circular Informação: Assim como as substâncias circulam, a informação sobre saúde e redução de danos também precisa chegar a todos. "As informações também têm que estar circulando", defende Val.
Reconhecer Direitos: O trabalho sexual precisa ser tratado como um direito. As políticas públicas devem ser desenhadas para alcançar essa população com dignidade, e não apenas com repressão.
Educar Clientes e Profissionais: A sensibilização não pode se restringir aos trabalhadores do sexo. É fundamental levar informação aos clientes e capacitar profissionais de saúde para que o cuidado seja oferecido de forma efetiva e livre de preconceitos.
As narrativas de Val, Marcelo e Gabriela são um chamado à ação. Elas nos lembram que por trás de cada estigma existe uma vida que pulsa, resiste e luta por dignidade. Ouvir essas histórias não é apenas um ato de empatia, mas um passo essencial para a construção de políticas que, em vez de apagar, finalmente visibilizem e protejam.


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