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Estudo "Pegação Folia. Análise das práticas afetivos-sexuais e de saúde e padrões de consumo de aditivos no sexo por homens que fazem sexo com homens no carnaval de Salvador"

Atualizado: há 13 minutos

TÍTULO DO ESTUDO

Pegação Folia. Análise das práticas afetivos-sexuais e de saúde e padrões de consumo de aditivos no sexo por homens que fazem sexo com homens no carnaval de Salvador.


PESQUISADOR

Anderson Reis de Sousa


MODERADORES

João Geraldo Netto e Ruan Nilton Melo


DETALHES

Apresentação de pesquisa conduzida pelo professor Anderson Reis de Souza, intitulada "Pegação Folia: análise das práticas afetivas sexuais e de saúde e padrões de consumo de aditivos no sexo por HSH no carnaval de Salvador". A pesquisa, realizada por uma abordagem mista (qualitativa e quantitativa), buscou entender os padrões de práticas sexuais e uso de substâncias (conhecidas como "chemsex" ou "sexo aditivado") entre homens que fazem sexo com homens (HSH) durante o Carnaval de Salvador, uma área pouco estudada no Brasil. O pesquisador descreve os desafios na coleta de dados durante o evento de rua, a falta de financiamento e as barreiras institucionais, além de detalhar a metodologia utilizada, incluindo a coleta em campo e a análise de mídias sociais. Por fim, a apresentação lista os estudos futuros planejados a partir dos dados coletados, focados em temas como prevalência de uso, número de parceiros, prevenção combinada ao HIV, e a criação de um modelo lógico e instrumentos brasileiros para a prática do chemsex.





O Carnaval de Salvador representa um dos maiores e mais complexos fenômenos socioculturais do Brasil, mobilizando milhões de indivíduos em um ambiente de intensa socialização e expressão. Este cenário, caracterizado pela efusividade e pela busca por interações afetivo-sexuais, constitui um contexto de alta relevância para a análise de práticas de saúde sexual. A compreensão da dinâmica do consumo de substâncias psicoativas associado ao sexo, prática frequentemente denominada chemsex ou "sexo aditivado", é de importância estratégica para o desenvolvimento de políticas públicas de saúde que sejam eficazes, humanizadas e alinhadas à realidade local.


O objetivo central deste relatório é sintetizar e analisar os achados do estudo "Pegação Folia", uma pesquisa de abordagem mista conduzida durante o Carnaval de Salvador. A análise aqui apresentada visa fornecer subsídios baseados em evidências para profissionais de saúde, gestores públicos e organizações da sociedade civil, qualificando o debate e a formulação de estratégias de prevenção, cuidado e redução de danos.


A estrutura deste texto foi organizada para apresentar uma visão abrangente do estudo. Inicia-se com a contextualização da pesquisa e seus desafios metodológicos, seguida da descrição do desenho do estudo e do perfil dos participantes. Posteriormente, o texto aprofunda a análise das práticas afetivo-sexuais e dos padrões de consumo observados, mapeia as vulnerabilidades e as estratégias de cuidado identificadas, e, por fim, apresenta um conjunto de recomendações estratégicas para a ação em saúde pública.


A formulação de estratégias de redução de danos assertivas depende fundamentalmente da produção de dados localizados, capazes de capturar as especificidades culturais e sociais de cada contexto, premissa que norteou todo o desenvolvimento do estudo em questão.


Contextualização e Justificativa do Estudo "Pegação Folia"


A realização de pesquisas com recorte regional é fundamental para preencher lacunas significativas no conhecimento sobre a prática do sexo aditivado no Brasil. Historicamente, Salvador e o estado da Bahia têm sido sub-representados nos estudos nacionais sobre o tema, gerando uma carência de dados que validem abordagens e terminologias culturalmente relevantes. O estudo "Pegação Folia" emerge, portanto, da necessidade de produzir evidências situadas, capazes de informar políticas de saúde mais alinhadas às dinâmicas locais.


A motivação para a condução da pesquisa foi multifacetada, partindo tanto de desafios práticos quanto de uma necessária reflexão acadêmica. Os principais impulsionadores do estudo foram:


  • Validação de Metodologias Nacionais: A equipe de pesquisa não apenas questionou a aplicabilidade direta do termo "chemsex" à realidade soteropolitana, mas também defendeu o uso de técnicas de pesquisa brasileiras, como o "discurso do sujeito coletivo", em resposta a questionamentos de revisores internacionais. Esta postura representa um movimento de validação de metodologias científicas brasileiras no cenário global.

  • Necessidade de Método Misto: Reconhecendo a complexidade do fenômeno, optou-se por um desenho de pesquisa de método misto, combinando abordagens quantitativas e qualitativas para capturar tanto a prevalência de comportamentos quanto os significados e contextos a eles associados.

  • Superação de Desafios Estruturais: A condução da pesquisa foi marcada por obstáculos que evidenciam o descaso sistêmico com o tema. A equipe enfrentou escassez de recursos financeiros, barreiras de acesso a órgãos públicos para articulação e a necessidade de implementar protocolos de segurança para proteger pesquisadores e participantes. Superar essas barreiras foi uma necessidade metodológica para produzir evidências válidas onde nenhuma existia.


Diante do desafio de abordar um tema sensível, a equipe adotou a decisão estratégica de utilizar o termo "pegação" como porta de entrada. Uma análise prévia da cobertura midiática sobre o carnaval revelou um foco narrativo na paquera, e não no uso de substâncias. Essa abordagem se mostrou eficaz para engajar os participantes de forma menos estigmatizante.


A superação desses desafios metodológicos permitiu a coleta de dados de grande riqueza e profundidade, cuja análise contextualizada será apresentada nas seções a seguir.


Desenho Metodológico da Pesquisa


A metodologia empregada no estudo "Pegação Folia" foi concebida de forma inovadora e adaptada às especificidades logísticas e sociais do Carnaval de Salvador. A robustez do desenho metodológico é um pilar para a validade das conclusões e recomendações apresentadas neste relatório, garantindo que os dados coletados sejam representativos do fenômeno no contexto investigado.


A pesquisa foi caracterizada como um estudo transversal de abordagem mista, que integrou análise quantitativa para estimar prevalências e fatores associados, e uma análise de conteúdo de perspectiva temático-reflexiva para aprofundar a compreensão das narrativas e significados atribuídos pelos participantes.


As estratégias de coleta de dados foram diversificadas e complementares, visando alcançar o público-alvo de maneira eficaz e segura:


  1. Formulário Estruturado: Foi o principal instrumento quantitativo, aplicado durante o carnaval. Para aumentar a adesão, seus tópicos foram organizados com termos próprios da festa (como "bloco", "camarote" e "pipoca"), tornando a experiência de resposta mais intuitiva.

  2. Estratégias de Divulgação: O uso de flyers com QR Codes demonstrou ser a ferramenta de divulgação mais bem-sucedida. Esta estratégia se mostrou superior a abordagens diretas, permitindo que os participantes engajassem com a pesquisa de forma discreta e em seu próprio tempo, superando as barreiras logísticas e sociais do ambiente caótico do festival.

  3. Mapeamento Geoespacial e Digital: Os pesquisadores realizaram um mapeamento prévio dos circuitos oficiais do carnaval e dos "pontos de pegação", tanto físicos (como o Farol da Barra) quanto digitais. Este levantamento utilizou diversas fontes, incluindo sites especializados, informações da comunidade ("boca a boca") e análise de aplicativos de relacionamento.

  4. Análise de Aplicativos: Uma análise de conteúdo em aplicativos de relacionamento revelou dinâmicas cruciais, como a existência de um comércio de substâncias (com termos como "delivery" e uso de códigos e emojis específicos) e o interesse explícito de usuários na prática do sexo aditivado, fornecendo um panorama do ambiente digital que precede os encontros presenciais.


Essa metodologia multifacetada permitiu traçar um perfil detalhado dos participantes e de suas práticas, que será apresentado na próxima seção.


Perfil dos Participantes da Pesquisa


A compreensão do perfil sociodemográfico dos participantes é um passo crucial para interpretar as dinâmicas sociais do fenômeno do sexo aditivado no Carnaval de Salvador e para direcionar políticas de saúde de forma equitativa. Os dados preliminares revelam um público diverso, com características específicas que demandam uma análise aprofundada.


A tabela abaixo resume os principais dados de caracterização da amostra analisada no estudo "Pegação Folia".

Característica

Dado Preliminar

Total de Respostas Válidas

Aproximadamente 400

Origem Predominante

Residentes no Brasil (com destaque para Salvador e interior da Bahia)

Participação Internacional

Registros de participantes da Alemanha, Quênia, EUA, entre outros

Perfil Racial

Utilização da categoria "negros e não negros", com expressiva participação de pessoas negras

Diagnóstico de HIV

70% das 390 pessoas analisadas já possuíam diagnóstico prévio de HIV

O achado de que 70% dos participantes já viviam com HIV é de importância crítica e transforma fundamentalmente a abordagem de saúde pública necessária. Este dado desloca o foco da discussão de uma prevenção primária para a necessidade urgente de um cuidado integral e integrado para pessoas vivendo com HIV (PVHIV). A alta prevalência nesta amostra sublinha que as estratégias de redução de danos devem ser indissociáveis das políticas de saúde mental, manejo de uso de substâncias e adesão ao tratamento antirretroviral. Torna, portanto, as recomendações deste relatório não apenas aconselháveis, mas imperativas para a saúde desta população.


A partir da caracterização desse público, o relatório passará a analisar em profundidade suas práticas, comportamentos e padrões de consumo de aditivos.


Análise das Práticas Afetivo-Sexuais e Padrões de Consumo


Esta seção constitui o núcleo analítico do relatório, mapeando os comportamentos de risco e de prazer que devem ser o foco das ações de saúde. A análise transcende a simples listagem de substâncias, buscando compreender as motivações, os rituais e os contextos em que as práticas ocorrem, oferecendo um panorama detalhado para a formulação de estratégias de redução de danos.


Práticas, Espaços e Ferramentas Digitais


O estudo evidenciou o uso intensivo de recursos digitais, especialmente aplicativos de relacionamento, como principal ferramenta para mediar a "pegação". Esses espaços virtuais funcionam como um ambiente preparatório onde ocorrem as negociações e a organização dos encontros. A dinâmica dos espaços físicos foi claramente delineada, diferenciando os públicos (circuitos de trios), que "bombam" com grande circulação, dos privados ("casas de pegação", "festinhas"), onde os encontros para sexo aditivado se concretizam. Identificou-se a existência de grupos de WhatsApp associados a esses locais, que funcionam como comunidades para socialização e compartilhamento de mídia.


Padrões de Consumo de Aditivos


A pesquisa mapeou as substâncias, ou "aditivos", mais consumidas. A tabela abaixo apresenta os principais achados.

Substância ("Aditivo")

Observação

Maconha

Prevalência de uso superior a 70% entre os usuários de aditivos

Cocaína

Uso expressivo relatado pelos participantes

Poppers

Comumente associado a práticas específicas de consumo

GHB

Mencionado entre as substâncias utilizadas no contexto sexual

Lança-perfume

Substância tradicionalmente ligada ao carnaval e presente nas práticas

Ketamina

Citada como um dos aditivos consumidos

Ecstasy

Presente nos relatos de consumo para intensificar a experiência

As principais motivações para o uso foram: busca por mais energia, desejo por agitação e euforia e intenção de melhora do desempenho sexual. Quanto à aquisição, a partilha entre pares ("pessoas próximas") foi relatada com frequência ligeiramente superior à compra via "dealer", sugerindo que as redes sociais de confiança são o principal canal de acesso, um insight crucial para intervenções baseadas na comunidade. Adicionalmente, a análise revelou uma dimensão socioeconômica: participantes com menor poder aquisitivo relataram maior dependência do consumo de aditivos socializados por outros, evidenciando como a disparidade econômica molda a natureza das vulnerabilidades.


Rituais e Práticas Associadas


A análise revelou a existência de práticas de preparação pré-carnaval que incluem o uso de anabolizantes, suplementos, medicamentos emagrecedores e produtos estéticos. Foram descritas também práticas de consumo combinado, como a associação de poppers com Vicks VapoRub aplicado via anal, nomeada pelos usuários como "cabeça quente, cu gelada", que busca a intensificação de sensações.


Este complexo interjogo de consumo ritualizado e dinâmicas sociais intensas cria um cenário único de vulnerabilidade agudizada e, simultaneamente, de cuidados emergentes baseados na comunidade, que requer uma desconstrução cuidadosa.


Vulnerabilidades Identificadas e Estratégias de Cuidado


É fundamental mapear as vulnerabilidades associadas ao sexo aditivado não como falhas individuais, mas como questões estruturais que demandam respostas coordenadas do poder público. A existência de estratégias de cuidado autônomas na comunidade não é apenas um achado positivo, mas uma denúncia da falha do sistema de saúde em prover suporte formal. A comunidade está, efetivamente, preenchendo um vácuo deixado pelo Estado.


Riscos e Complicações de Saúde


Os participantes relataram a percepção de "complicações na saúde" relacionadas ao uso de aditivos, indicando consciência sobre os riscos. Contudo, o estudo expôs uma grave lacuna na resposta institucional. Esta falha se manifesta tanto no nível individual quanto no coletivo: o relato de um participante que, sentindo-se mal, recorreu a um policial militar por falta de um ponto de apoio adequado, e a ocorrência de uma "overdose coletiva" em uma casa noturna, que evidencia a ausência de protocolos de emergência em larga escala. Ambos os casos representam dois extremos do mesmo espectro de abandono institucional.


Percepções, Preconceito e Desinformação


Os achados qualitativos revelaram um amplo desconhecimento sobre o termo "chemsex", dissenso sobre seu significado e a existência de preconceito e discriminação, inclusive entre praticantes. A palavra "risco" apareceu com grande recorrência nas narrativas, mas essa percepção coexiste com a forte associação da prática ao "prazer" e à hipersexualização estimulada pelo contexto do carnaval, criando uma tensão entre a busca por experiências intensas e a gestão dos riscos.


Estratégias de Redução de Danos


Um dos achados mais potentes do estudo foi a constatação de que os participantes já adotam diversas medidas de redução de danos, mesmo sem nomeá-las assim. Práticas como manter uma boa hidratação e o uso de proteção solar foram frequentemente mencionadas como estratégias de autocuidado. A existência dessas práticas autônomas valida a abordagem de redução de danos e indica um caminho potente para as políticas de saúde: partir do reconhecimento e fortalecimento das estratégias que a própria comunidade já desenvolve.

Esses achados apontam para a necessidade de transformar a evidência coletada em recomendações concretas para a ação, que constituem o foco da seção final.


Recomendações para Políticas Públicas e Estratégias de Saúde


O propósito final deste relatório é traduzir a evidência científica gerada pelo estudo "Pegação Folia" em ações práticas e estratégicas. As recomendações a seguir são direcionadas a gestores públicos, profissionais de saúde e organizações da sociedade civil, com o objetivo de subsidiar a construção de uma política de saúde sexual e redução de danos mais eficaz, contextualizada e humana.


  1. Desenvolvimento de Materiais Informativos Contextualizados: É imperativa a criação de um guia de bolso para usuários e de um relatório técnico detalhado para gestores. Ambos devem utilizar a linguagem e os termos locais identificados na pesquisa (um "catálogo de termos"), como "pegação" e "aditivos", para garantir maior alcance, identificação e legitimidade.

  2. Criação de Protocolos e Instrumentos Clínicos: O sistema de saúde deve, com urgência, elaborar um protocolo clínico e assistencial para o manejo de casos de intoxicação e outras complicações relacionadas ao sexo aditivado. É igualmente necessário o desenvolvimento de uma nota técnica para conselhos profissionais (como o de Enfermagem) e a criação de uma escala brasileira validada para avaliação da prática.

  3. Estruturação de um Modelo Lógico de Cuidado: É fundamental a construção de um "modelo lógico" da prática do sexo aditivado no Brasil. Esse modelo deve mapear os dispositivos de saúde (atenção primária, urgência, saúde mental), segurança pública e assistência social que podem compor uma linha de cuidado integral e intersetorial, articulando as respostas existentes e identificando lacunas.

  4. Capacitação Profissional Continuada: Impõe-se a criação de um programa de aprimoramento profissional para equipes de saúde, segurança pública (incluindo guardas e policiais) e assistência psicossocial. A formação deve incluir a participação de arte-educadores e redutores de danos para garantir uma abordagem humanizada, livre de estigmas e focada no cuidado.

  5. Articulação com o Setor Privado: É indispensável pressionar e articular com produtores de eventos e proprietários de estabelecimentos comerciais para que assumam corresponsabilidade. Devem ser instados a implementar ações de redução de danos, como pontos de hidratação e áreas de descanso, e a treinar suas equipes para o manejo inicial de emergências.


A implementação dessas recomendações representa um caminho sólido para a construção de uma abordagem de saúde pública que seja, ao mesmo tempo, mais humana, eficaz e genuinamente baseada na realidade da população.


Concluindo


O estudo "Pegação Folia" oferece um panorama detalhado e sem precedentes sobre as práticas afetivo-sexuais e o consumo de aditivos durante o Carnaval de Salvador. Seus achados demonstram a complexidade de um fenômeno que mescla busca por prazer, rituais, tecnologias digitais e estratégias autônomas de cuidado, ao mesmo tempo em que expõe vulnerabilidades estruturais e lacunas críticas na resposta do sistema de saúde.


Este relatório reitera a urgência de desenvolver políticas públicas de saúde sexual e redução de danos que sejam culturalmente sensíveis, informadas por dados locais robustos e construídas em diálogo permanente com a comunidade. A superação de abordagens moralistas e a adoção de estratégias pragmáticas são fundamentais para a proteção da saúde e a promoção da cidadania.


O Carnaval de Salvador, com toda a sua intensidade, não deve ser visto apenas como um espaço de vulnerabilidade, mas como uma oportunidade única para a inovação em saúde pública, a promoção do cuidado entre pares e a construção de uma cultura de celebração que seja, acima de tudo, mais segura e saudável para todos.


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